Um trabalhador rural que permaneceu por 21 anos em condição análoga à escravidão, tendo sido resgatado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em abril 2022, deverá receber as verbas trabalhistas referentes às duas décadas em que realizou atividades na propriedade. A decisão é da 4ª Turma de desembargadores do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (TRT-PR), que se opôs ao argumento da ré de que caberia a prescrição quinquenal ao caso, uma vez que o trabalhador poderia, a qualquer tempo, ter buscado a Justiça do Trabalho. No período, o trabalhador não usufruiu folga e férias, tampouco recebeu salário. Seus documentos ficavam com o proprietário do sítio, localizado em Barão de Lucena, distrito de Nova Esperança, Noroeste do Paraná.
“Não se pode falar propriamente de inércia do titular do direito, diante da inequívoca restrição de direitos fundamentais a que estava submetido o autor durante todo o período em que foi reconhecida a prestação de serviço. Logo, inadmissível a fluência do prazo prescricional anteriormente ao resgate do trabalhador”, afirmou o Colegiado em acórdão do mês de agosto. O relator foi o desembargador Valdecir Edson Fossatti. Da decisão, cabe recurso.
Os representantes do MPT encontraram o trabalhador em plena atividade laboral, sem a formalização do contrato de trabalho, submetido a condições degradantes e de alojamento, além de outras irregularidades. Na ocasião, o dono da propriedade firmou Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho, em virtude da ocorrência. Havia, ainda, um outro trabalhador submetido às mesmas condições do autor da ação.
A sentença de primeiro grau indeferiu o pedido de verbas trabalhistas de todo o período laboral, aplicando a prescrição quinquenal. Isso porque, em seu depoimento em audiência, o autor disse que podia sair da propriedade, inclusive por lazer, o que descaracterizaria a condição análoga à escravidão, entendeu o juiz.
Mas a 4ª Turma do TRT-PR reformou a sentença, frisando que as declarações prestadas pelo trabalhador em seu depoimento em audiência não têm o alcance que foi atribuído pelo Juízo de primeiro grau, “pois embora o reclamante tenha mencionado a possibilidade de saída do local, deve prevalecer a realidade constatada de fato por autoridades fiscais e policiais no local em que o autor trabalhava, cujas condições verificadas se equiparavam às de escravo. Logo, não é razoável entender que o autor detinha condições, seja no aspecto material ou moral, de exercer o seu direito de ação. Assim, diante do reconhecido estado de sujeição do trabalhador, o prazo prescricional não pode fluir anteriormente ao resgate, sendo evidente que a manifestação de vontade do autor estava comprometida”, afirma a decisão de segundo grau.
O Colegiado ressaltou ser inaplicável a prescrição quinquenal, nos moldes do art. 7º, XXIX, da Constituição Federal, devendo incidir, por analogia, a parte final da OJ 375, da SBDI-I, do TST, diante da absoluta impossibilidade de acesso ao Judiciário. A OJ 375 diz: “A suspensão do contrato de trabalho, em virtude da percepção do auxílio-doença ou da aposentadoria por invalidez, não impede a fluência da prescrição quinquenal, ressalvada a hipótese de absoluta impossibilidade de acesso ao Judiciário”.
O relator citou textualmente alguns acórdãos do Tribunal Superior do Trabalho (TST) sobre o tema, confirmando que, casos como o do trabalhador do sítio de Barão de Lucena, envolve: “crime contra a humanidade e grave violação aos direitos fundamentais”, pelo que “a norma geral sobre a prescrição trabalhista deve ser interpretada sistematicamente”. “Extrai-se do conjunto de princípios e das garantias constitucionais, bem como de regras explícitas em diplomas nacionais e internacionais que, na excepcional hipótese de submissão de trabalhador à condição análoga à de escravo, não há como se admitir a consumação de direitos pelo decurso do tempo”.
Com a decisão, o Juízo de primeiro grau deverá analisar e julgar os pedidos, considerando todo o período de vínculo empregatício reconhecido na origem (03.06.2001 a 12.04.2022), “evitando-se, desta forma, supressão de um grau de jurisdição, ficando sobrestados os demais itens do recurso”, concluiu a 4ª Turma.
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