Sobre Chuvas Torrenciais, Inundações, Danos de Toda Ordem, Segurança Hídrica, Barragens e Reservatórios

Enio Fonseca –  Engenheiro Florestal, Senior Advisor em questões socioambientais , Especialização em Proteção Florestal pelo NARTC e CONAF-Chile, em Engenharia Ambiental pelo IETEC-MG, , em Liderança em Gestão pela FDC, em Educação Ambiental pela UNB, MBA em Gestão de Florestas pelo IBAPE, em Gestão Empresarial pela FGV, Conselheiro do Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico, FMASE, foi Superintendente do IBAMA em MG, Superintendente de Gestão Ambiental do Grupo Cemig, Chefe do Departamento de Fiscalização e Controle Florestal do IEF, Conselheiro no Conselho de Política Ambiental do Estado de MG, Ex Presidente FMASE, founder da PACK OF WOLVES Assessoria Ambiental, parceiro da Econservation, Gestor Sustentabilidade Associação Mineradores de Ferro do Brasil.

Georges Humbert – Advogado, Professor,  Sócio Diretor de Humbert  Assuntos de Sustentabilidade e Jurídicos, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade- IBRADES,Membro da Comissão de Defesa do Meio Ambiente da OAB/BA,  Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra, Doutor e Mestre em direito pela PUC-SP. Foi Superintendente de Políticas Ambientais do Estado de Goiás, membro do CONAMA, do Comitê de Resposta a Desastres do Conselho de Governo da Presidência da República, do Conselho de Meio Ambiente da FIEB e da Câmara Florestal do Brasil e Bahia.

 

enchente no rio Taquari, RS. Fonte EBC

O Brasil acompanha a tragédia acontecida agora no Rio Grande do Sul, quando chuvas torrenciais, associadas a ciclones levou a cheias históricas em especial na Bacia do Rio Taquari, causando uma destruição imensa com mais 40 de pessoas mortas e um número elevado de desaparecidos. Em pouco tempo este curso de água passou de uma vazão média de 162 para 9.783 metros cúbicos por segundo.

Diante dos graves impactos,  o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um inquérito civil com o objetivo de apurar as responsabilidades de órgãos públicos por medidas que poderiam amenizar e prevenir os danos causados pelas inundações que atingiram este estado.

A portaria de instauração do inquérito pede que sejam expedidos ofícios aos prefeitos municipais e representantes da Defesa Civil das regiões para que prestem esclarecimentos.

O MPF também solicitou à Defesa Civil cópias de todas as comunicações recebidas da Companhia Energética Rio das Antas (Ceran), que opera Pequenas Centrais Hidrelétricas, a fio d’água, sobre o monitoramento do aumento do nível das águas do rio em decorrência das chuvas.

Já à Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Estado, o MPF solicitou informações sobre a conclusão do Zoneamento Ecológico e Econômico do Rio Grande do Sul e sobre a criação de possíveis comissões de mudanças climáticas instauradas pelos municípios. Questionou, ainda, qual foi a dinâmica adotada com relação à emissão de alertas de evacuação aos moradores das áreas atingidas.

Esta tragédia observada, é recorrente ao longo do tempo, em vários estados do Brasil, em especial em Minas Gerais, considerada a caixa d’água do País, pelo seu elevado número de cursos de água, que nos períodos de chuva recebem grandes vazões afluentes que abandonam suas calhas principais causando enchentes de grande monta.

Existem milhares de registros de enchentes no Brasil, podendo ser relembrados os ocorridos em Santa Catarina em 1855, em Porto Alegre em 1941, em Caraguatatuba 1967, em Minas Gerais e Espírito Santo em 1979, em Santa Catarina em 2008, no Norte e Nordeste do Brasil em 2009, no Rio de Janeiro e São Paulo 2010 e 2011, em Santa Catarina em 2011 e tantas outras.

As enchentes são fenômenos prioritariamente naturais. Elas são provocadas especialmente por grandes eventos chuvosos, em termos de quantidade e/ou constância. Assim, o acúmulo de água da chuva ( que pode infiltrar no solo, ou escoar ) provoca o transbordamento dos cursos de água. Esse extravasamento é um processo natural nas zonas de inundação dos rios, chamadas de vales fluviais ou planícies de inundação. As enchentes ocorrem de forma periódica, com destaque para as épocas mais chuvosas do ano.

A ação do homem no ambiente potencializa esse fenômeno, pela ocupação desordenada do espaço urbano e rural, pela impermeabilização do solo, pela eliminação da vegetação nativa e pela deposição irregular de resíduos sólidos.

Uma iniciativa positiva do homem foi a construção de barragens ao longo dos cursos de água.

As barragens são consideradas barreiras artificiais, construídas para que grandes quantidades de água sejam retidas, formando reservatórios. É possível datar a sua utilização desde o início da civilização, sendo um dos fatores fundamentais para que muitas sociedades se desenvolvessem.

As barragens têm servido aos povos por pelo menos 5.000 anos, como atestam as ruínas de obras pré-históricas de irrigação na Mesopotâmia, no Egito, Índia, Pérsia e no Extremo Oriente.

A primeira barragem de porte que se conhece é a de Sadd-EL-Kafara, construída há 4.800 anos no Egito, com 12 metros de altura. Já no Ceilão, existia uma barragem com 18 quilômetros de extensão e 21 metros de altura, datada no ano de 504. Na Espanha, temos registros de barragens construídas em 25 a.C.

Inicialmente, as barragens tinham como objetivo combater a falta de água nos períodos mais secos, permitindo a dessedentação e a produção de alimentos. As quedas d´água , naturais ou artificiais, muita vezes associadas às barragens, têm sido usadas para realizar trabalho há milhares de anos. A ação direta do jato proveniente de uma queda sobre uma roda d´água, por exemplo, produz energia mecânica.

Os romanos já conheciam esses dispositivos desde o século I a.C. Com a Revolução Industrial, sua construção foi incrementada em todos os continentes , em razão do crescimento da demanda de água e de energia para os aglomerados urbanos e para a produção agrícola. Com isso, as técnicas para projetar e construir as barragens foram aprimoradas com o uso das barragens de concreto, algumas delas com grande capacidade de reservação de água.

A água é um elemento essencial à vida e ao desenvolvimento de diversas atividades humanas. A sua crescente utilização para diversos fins como indústria, produção agropecuária, geração de energia, consumo doméstico, entre outros, observado ainda os efeitos climatológicos, e a poluição,  tem feito com que a disponibilidade hídrica não esteja sendo suficiente para atender as demandas e, ainda, manter as condições ambientais mínimas para o desenvolvimento socioeconômico e ambiental em muito dos espaços territoriais das bacias hidrográficas, vivenciando-se, nesse momento, uma situação de escassez hídrica, a qual já está evidenciada em diversas bacias hidrográficas do Brasil e do mundo.

Em boa parte do país, o período de chuvas, chamado de período úmido, dura em torno de seis meses, começando em novembro e terminando em abril; por consequência, os demais sete meses de pouca chuva formam o período seco. Além dessa variação anual das chuvas, com meses úmidos e secos, há uma outra variável que consiste num bloco de anos consecutivos com chuvas acima da média, seguido por um outro bloco com chuvas abaixo da média. No Brasil esses ciclos têm, em média, oito anos.

Dessa forma, existem situações em que a disponibilidade hídrica natural, verificadas nas vazões disponíveis, não é suficiente para suprir as demandas, havendo então a necessidade de aumentar essa disponibilidade pelo aproveitamento do potencial de regularização de vazão nos cursos d’água, através da construção de reservatórios de acumulação.

Em outras situações, barragens são construídas também para permitir o controle de cheias.

Se as precipitações fossem permanentes ao longo do ano, em volumes significativos, não se justificaria construir represas e toda a demanda de água poderia ser atendida por captações nas calhas dos rios e em espelhos de água naturais. A construção dos reservatórios se faz necessária para acumular água nos períodos de maior pluviosidade e para transferir esse estoque ao longo do tempo, suprindo a demanda em períodos  de menor chuva, garantindo a segurança hídrica regional.

A maior parte da hidrosfera do planeta, 97%, é composta por água dos mares e oceanos que, por serem extremamente salgadas, são impróprias para consumo, sem tratamentos adequados, como a dessalinização da água.

Do restante da água do mundo, 71% se encontra em forma de gelo nas calotas polares. Os outros 29% restantes de água  estão distribuídos em águas subterrâneas (18%), rios e lagos (7%) e umidade do ar (4%).

Outro fato agravante é a má distribuição dessa água potável pelo mundo. Algumas regiões do Oriente Médio e da África, por exemplo, apresentam uma significativa crise quanto ao abastecimento de água, o que se agrava com a ausência de saneamento básico para boa parte da população.

O Brasil dispõe de grande abundância de água doce, com cerca de 12% de toda a água doce disponível no mundo. No entanto,  temos observado períodos e diversas regiões  com a escassez de água para a agricultura , consumo humano e outros usos, devido à distribuição desigual dos rios e às condições climáticas regionais.

A demanda por uso da água no Brasil é crescente, com aumento de aproximadamente 80% no total retirado de água nas últimas duas décadas, conforme dados da Agência Nacional de Águas, que em 2017 previu que, até 2030, a retirada aumentará 30% .

No Brasil cerca de 90% da água se encontra nas bacias hidrográficas de baixa densidade demográfica dos rios Amazonas e Tocantins, no entanto cerca de 90% da população convive com o restante dos recursos hídricos.

As barragens são importantes para que o controle de cheias durante os períodos chuvosos aconteça nas várias regiões do país. Há diversas barragens que são mantidas com essa finalidade, e elas são projetadas levando-se em conta estudos de várias décadas do clima, condições edáficas, vazões ao longo do tempo, e possuem estruturas estravazoras, como comportas e soleiras onde as águas podem passar em situações críticas.

Uma das funções dos reservatórios de grande porte e funcionar para o de amortecimento de cheias Conforme normas operativas aprovadas pela ANEEL, ele que acumula temporariamente as águas pluviais com a função de amortecer as vazões de cheias e reduzir os riscos de inundações a jusante. Os reservatórios de amortecimento podem ser em linha ou lateral de acordo com seu posicionamento em relação ao canal que contribui para o reservatório, e se valem de vertedouros ou comportas para permitir a passagem da águas, e sendo de geração de energia elétrica, também se vale das turbinas para essa passagem.

No tocante ao tema enchentes, é preciso a implementação de um  “Programa de controle de cheias” que preveja a execução de planos, projetos e obras de drenagem com vistas ao controle e minimização das cheias, uso e ocupação do solo, restauração ambiental, específicos para cada bacia.

As barragens que atendem a geração de energia elétrica, podem ser a fio d’água, ou com reservatórios. As barragens a fio d’água não conseguem reter volumes significativos de águas afluentes, pois operam de forma simplificada, deixando passar toda a água que chega. Sua capacidade de funcionar como controle de cheias é pequena.

As dificuldades de licitação de aproveitamentos hidrelétricos verificadas a partir de 2003 não podem ser atribuídas apenas à introdução do Licenciamento Ambiental Prévio como requisito para o leilão de novos aproveitamentos. Na verdade, foi implantado, no País, um clima desfavorável ao licenciamento de usinas hidrelétricas, especialmente àquelas com reservatórios,

Desde então  o setor teve que lidar com as diferentes pressões locais, criando soluções e práticas para lidar com os impactos sociais e ambientais do aproveitamento hidrelétrico, especialmente no tocante aos vinculados aos grandes reservatórios de água.

Hoje temos no Brasil cerca de 60 mil normas legais ambientais, que vão desde a Constituição, passando por leis e decretos federais, estaduais, municipais e atos normativos infralegais, aos quais os atores responsáveis pela implantação de Usinas hidrelétricas e seus reservatórios devem cumprir.

A construção predominante nos últimos anos, apenas de hidrelétricas a fio d’água ou com pouquíssima capacidade de reservação, vem fazendo com que cresça a participação térmica e de outras fontes , como solar, eólica e biomassa brasileira de geração de eletricidade, uma das mais limpas do mundo

Como curiosidade podemos observar na relação abaixo a  lista das 10 maiores barragens de geração de energia elétrica do Brasil,  e a data de sua operação, quando podemos inferir numa contagem de tempo pregressa, de pelo menos 20 anos, quando começaram a ser estudadas.

Maiores barragens de geração de energia elétrica do Brasil

Posição         Nome da Barragem       Capacidade (em MW)  Entrada em operação

1         Usina Hidrelétrica de Itaipu                     14.000                       1984

2        Usina Hidrelétrica de Belo Monte            11.233                       2016

3         Usina Hidrelétrica de Tucuruí                   8.370                       1984

4         Usina Hidrelétrica de Jirau                        3.750                        2013

5         Usina Hidrelétrica Santo Antônio             3.568                        2012

6         Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira            3.444                       1973

7         Usina Hidrelétrica de Xingó                        3.162                       1994

8         Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso IV     2.462                       1979

9         Usina Hidrelétrica de Itumbiara                2.082                       1980

10        Usina Hidrelétrica Teles Pires                   1.820                       2015

De acordo com o Estudo “A Dinâmica da Superfície de Água do Território Brasileiro”, elaborado pelo MAPBiomas.org, em agosto de 2021, toda a superfície  de água do Brasil ocupava 2% do território nacional.

Fonte Mapbiomas

Ainda de acordo com os dados dessa organização, os reservatórios de Usinas Hidrelétricas ocupavam, 2.721.375 ha . Considerando a área total do Brasil de 851.600.000 ha, temos que os reservatórios de usinas hidrelétricas ocupam 0,039 % de sua extensão.

A construção dos reservatórios se faz necessária para acumular água nos períodos de maior pluviosidade e para transferir esse estoque ao longo do tempo, suprindo a demanda em períodos de menor chuva, garantindo a segurança hídrica regional., e também para o controle de cheias.

Segundo o conceito dado pela UN-Water, e reiterado por eles em 2021, segurança hídrica é “a capacidade de uma população de: assegurar o acesso à água em quantidade adequada e de qualidade aceitável para a vida (subsistência) sustentável, o bem-estar humano e o desenvolvimento socioeconômico; garantir a proteção contra a poluição e os desastres relacionados com a água, e a preservação de ecossistemas, em um clima de paz e estabilidade política”.

A Lei 9.433 que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), definiu em seus fundamentos o uso múltiplo da água e a gestão descentralizada e participativa, tendo como unidade de planejamento territorial a bacia hidrográfica. A “Lei das Águas”, portanto, incorpora a integração dos interesses dos diversos usos e usuários que competem entre si pela sua apropriação, observada a atuação e competência dos Conselhos Federal, Estaduais, Municipais e Comitês de Bacias Hidrográficas, e das Agências Reguladoras.

No recente caso do Rio Grande do Sul, a CERAN -Companhia Energética Rio das Antas- opera , na bacia do rio Taquari, 3 Pequenas Hidrelétricas a fio d’água, que foram incapazes de reter toda a cheia decorrente das chuvas, principalmente por não disporem de reservatórios.

Por outro lado, barragens de grande porte, com reservatório, além de gerar energia, se prestam a auxiliar de maneira robusta no processo de controle de cheias. Os reservatórios são mantidos mais baixos, antes do período das chuvas, e este “vazio”, se presta a acumular a água das cheias.

Em qualquer situação, o gestores de barragens são obrigados ao cumprimento da

Lei federal 14.066/2020, que determina a implementação operacionalização do Plano de Ação de Emergência (PAE), estabelecido pela Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), que estabelece procedimentos de alerta e comunicação em situações de emergência, como enchentes e rompimentos das estruturas.

A necessidade do planejamento na efetiva retomada da construção de barragens de elevada capacidade de acumulação precisa estar assegurada em políticas pragmáticas, gestão eficaz, arcabouço jurídico forte, sistemas de engenharia confiáveis, usos múltiplos e conscientização sobre os riscos existentes. Tudo isso incorporado em um Plano Nacional de Segurança Hídrica, capaz de minimizar eventos de cheias e de secas.

Demais disso, lançamos as seguintes reflexões: o problema ambiental, no Brasil e no mundo, não é derivado das leis ou dos instrumentos, mas da má aplicação destes. E nem se resolve via poder de polícia, disciplinar ou sancionador (multas, prisão, embargos, licenciamento).

Ora, a partir do princípio jurídico da preservação e proteção ambiental (art. 225), impõe-se a todos sob a jurisdição brasileira agir sempre baseado nas regras de prevenção e da precaução, sendo esta uma qualificação do dever de eficiência (art. 37) que deve nortear a administração pública. Assim, não podemos admitir ações que não sejam planejadas, açodadas, aleatórias, ou posteriores aos danos ambientais. Com estes pressupostos, deve-se entender por prevenção a norma de direito ambiental que atrai para ordem jurídica da tutela do meio ambiente o valor que importa a todos, especialmente ao Poder Público, o dever agir de modo prévio, com controle, fiscalização, exigência de estudos, medidas mitigadoras de impacto, compensação, ao se decidir o exercício de atividades ou empreendimentos potencialmente causadores de degradação do meio ambiente.

Ocorre que, por estes pressupostos e para evitar ou minimizar riscos e impactos ambientais, devemos, sobretudo, dispor onde podem e devem ser realizadas determinadas atividades e empreendimentos, mediante ato normativo, do legislativo e, quando necessário, ato regulamentar do executivo, em caráter geral e abstrato, em detrimento do casuísmo e improviso que é a nossa realidade aqui vivenciada. Para impedir ou diminuir as chances de ocorrências trágicas como essa, já é de rigor possuir leis nacional, regional (estaduais) e local (municipais), indicando as áreas em que atividades e projetos de risco (como mineração, nucleares, de energia, portos, aeroportos, polos químicos e petroquímicos, entre outras), conforme repartição de competências constitucionais (art. 23, 24 e 30

É certo que o Brasil precisa da construção de novas usinas com grandes reservatórios. A segurança hídrica, energética  e o controle de cheias agradecerão.

 

 

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