Dispõe sobre o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e a garantia dos seus direitos
O CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – CONANDA, no uso de suas atribuições legais e regimentais, conforme disposto na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei nº 8.242, de 12 de outubro de 1991, regulamentado pelo Decreto nº 11.473, de 6 de abril de 2023;
CAPÍTULO I
DO ATENDIMENTO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL
Seção I
Definições Gerais
Art. 1º Esta resolução dispõe sobre o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e a garantia de seus direitos pelo Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA).
Art. 2º Para fins desta resolução, considera-se:
I – Interrupção Legal da Gestação: A interrupção voluntária da gestação nos casos previstos em lei (gestação decorrente de violência sexual, risco de vida para a pessoa gestante e/ou gestação de fetos anencéfalos e incompatíveis com a vida);
II – Prioridade absoluta no acesso ao serviço do interrupção legal da gestação:
A garantia do acesso à interrupção da gestação nos casos previstos em lei para crianças e adolescentes da forma mais célere possível e sem a imposição de barreiras sem previsão legal. Facilitação de encaminhamento/acolhimento nos serviços especializados, exames e consultas, quando necessário, por exemplo nos casos de risco de morte e anencefalia;
III – Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima e Testemunha de Violência: é o conjunto articulado de órgãos, entidades e instituições que compõem o Sistema de Garantia de Direitos responsáveis por promover, defender e controlar os direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, conforme Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, e Resolução nº 113/2006 do CONANDA;
IV – Violência sexual contra crianças e adolescentes: qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda abuso sexual, exploração sexual comercial e tráfico de pessoas, conforme dispõe a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017;
V – Violência institucional: entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização, conforme dispõe a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017;
VI – Objeção de consciência: Direito individual de negativa de cumprimento de dever profissional com base em convicções morais;
VII – Escuta especializada: Procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade, previsto no art. 7º da Lei 13.431/2017;
VIII – Depoimento especial: Procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária, previsto no art. 8º da Lei 13.431/2017;
IX – Gestação decorrente de estupro de vulnerável: Toda gestação de criança ou adolescente de até 14 anos, conforme o disposto no art. 217-A do Código Penal, sendo irrelevante a análise sobre o consentimento na relação sexual, visto que crianças e adolescente desta idade são legalmente incapazes de oferecer consentimento válido para atos dessa natureza;
X – Notificação compulsória: Notificação sigilosa contínua dos casos suspeitos ou confirmados de violência sexual contra crianças e adolescentes à autoridade sanitária, buscando conhecer a magnitude das violências e fornecer subsídios para a definição de políticas públicas, não se destinando à denúncia;
XI – Comunicação externa sigilosa: Comunicação contínua à autoridade policial dos casos suspeitos ou confirmados de violência sexual contra crianças e adolescentes, buscando conhecer a magnitude das violências e fornecer subsídios para a definição de políticas públicas, não se destinando à denúncia;
XII – Comunicação externa em caso de risco: Comunicação individual em caso de risco grave à autoridade policial de caso suspeito ou confirmado de violência sexual contra criança ou adolescente buscando a adoção de providências voltadas a cessar a situação de risco e protegê-la; e
XIII – Comunicação ao Conselho Tutelar: Comunicação individual obrigatória do caso suspeito ou confirmado de violência sexual contra criança ou adolescente ao Conselho Tutelar para a adoção de medidas de proteção.
Seção II
Da Prevenção à Violência Sexual e da Gestação na Infância
Art. 3º É dever da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal garantir às crianças e adolescentes, familiares, responsáveis e cuidadoras/es, autoridades públicas e sociedade em geral o acesso à informação sobre direitos sexuais e reprodutivos, destacando-se o direito à educação sexual, adequada à idade, cientificamente comprovada, e alinhada aos padrões internacionais de direitos humanos. § 1º Toda criança e adolescente tem direito a ter acesso a informações sobre seu próprio corpo que permitam a identificação e denúncia de situações de violência sexual. § 2º O acesso a informações baseadas em evidências científicas sobre infecções sexualmente transmissíveis e métodos contraceptivos deve ser difundido de acordo com sua idade e maturidade.
§ 3º O acesso a informações sobre a interrupção legal da gestação deve ser garantido por todos os atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, sendo vedada conduta diversa com base em convicções morais, políticas, religiosas e crenças pessoais.
Art. 4º Uniões de fato na infância e na adolescência constituem violação aos direitos humanos das crianças e dos adolescentes.
§ 1º É ilegal toda união estável ou casamento com criança ou adolescente menor de 16 anos, nos termos do art. 3º do Código Civil.
§ 2º É dever do Poder Público estabelecer ações de conscientização social para evitar e reduzir o número de uniões forçadas com crianças e adolescentes.
Seção III
Das Diretrizes do Atendimento no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA)
Art. 5º O atendimento à saúde reprodutiva de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, incluindo o acesso ao interrupção legal da gestação, será regido pelos seguintes princípios:
I – Igualdade e não-discriminação;
II – Prevalência, primazia e precedência do superior interesse e dos direitos das crianças e adolescentes;
III – Respeito à liberdade de expressão e de consciência, ao acesso à informação, à autonomia progressiva e à escuta e participação da criança e do adolescente;
IV – Celeridade;
V – Não-revitimização;
VI – Direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social;
VII – Livre desenvolvimento da personalidade, da dignidade, da honra e da imagem.
Art. 6º Os Planos Nacional, Estaduais, Municipais e Distrital de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes deverão incluir ações que garantam o acesso a interrupção legal da gestação para vítimas de violência sexual, conforme o art. 128 do Código Penal, observando:
I – Protocolos e Fluxos de Atendimento: Estabelecer protocolos e fluxos de atendimento que garantam acesso rápido e seguro aos serviços de saúde para a realização da interrupção legal da gestação, de forma humanizada e respeitosa;
II – Capacitação de Profissionais: Promover a capacitação contínua de profissionais da saúde, assistência social, segurança pública e judiciário e demais profissionais do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, para assegurar o atendimento adequado e o cumprimento da lei em casos de violência sexual;
III – Campanhas de Sensibilização: Desenvolver campanhas de conscientização pública sobre os direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes, destacando o direito a interrupção legal da gestação e eliminando barreiras de acesso aos serviços.
Art. 7º As instituições do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente devem promover a capacitação obrigatória e periódica dos seus profissionais, abrangendo os direitos de crianças e adolescentes à interrupção legal da gestação, técnicas avançadas de escuta especializada, prevenção à revitimização e o reconhecimento de situações de violência sexual, com base em evidências científicas atualizadas e práticas humanizadas.
Parágrafo único. As ações mencionadas no caput deste artigo devem incluir informações sobre como identificar situações de violência sexual, sobre a importância de garantir a celeridade, o sigilo e o atendimento humanizado de saúde, e como prestar atendimento adequado e livre de preconceitos às vítimas.
CAPÍTULO II
DOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL
Seção I
Do Direito ao atendimento
Art. 8º A criança ou adolescente vítima de violência sexual deve ter garantido o seu direito de acesso à informação, de forma clara e adequada à sua idade, para tomar decisões informadas sobre questões relativas aos seus direitos, incluindo informações sobre a interrupção legal da gestação, no caso de gestação resultante de violência sexual, assegurando-lhe a autonomia necessária para escolher as opções disponíveis de maneira segura e protegida.
§ 1º A informação sobre a interrupção da gestação deve ser fornecida à criança ou adolescente de forma compreensível, imparcial, utilizando linguagem simples e acessível, e considerando sua idade, maturidade e capacidade de discernimento, assegurando que a criança ou adolescente compreenda todas as implicações de cada opção antes de tomar uma decisão.
§ 2º As informações descritas no caput devem ser oferecidas de forma alternativa, não hierarquizada e não compulsória.
§ 3º A ausência dos pais ou responsáveis legais não impede o pleno exercício do direito à informação de crianças e adolescentes, sendo obrigatório que todas as informações e esclarecimentos sobre a interrupção da gestação sejam fornecidas de forma clara e acessível.
Seção II
Do Direito a Interrupção Legal da Gestação
Art. 9º A interrupção legal da gestação é um direito humano de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, estando diretamente relacionado à proteção de seus direitos à saúde, à vida e à integridade física e psicológica, bem como ao pleno exercício de sua cidadania.
§ 1º A gestação em crianças e adolescentes é um processo que representa risco à saúde física, psicológica e mental que pode resultar em impactos sociais no seu pleno desenvolvimento, aumento de adoecimento, incapacidade e mortes.
§ 2º A interrupção legal da gestação para crianças e adolescentes constitui parte das ações de prevenção a morbidade e mortalidade.
Art. 10. Identificada a gravidez decorrente de violência sexual e/ou situação de risco de vida ou diagnóstico de anencefalia, e manifestado o interesse na interrupção legal da gravidez, o órgão do SGD que primeiro receber o relato encaminhará a criança ou adolescente direta e imediatamente ao serviço de saúde para realizar o procedimento.
§ 1º A manifestação de desejo ou vontade da criança ou adolescente e seu consentimento será obtida mediante escuta especializada, na forma da Lei nº 13.431/2017 e da Seção III deste Capítulo, assegurando-se o direito à proteção integral, ao sigilo e ao devido acompanhamento especializado.
§ 2º A criança ou adolescente tem direito a ser acompanhada em todos os procedimentos necessários à realização da interrupção da gestação por um integrante do órgão do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, se assim desejar, para que possa oferecer suporte emocional e garantir a proteção da criança ou adolescente, sem prejuízo do acompanhante previsto no artigo 23.
Art. 11. Não havendo serviço de saúde que realize a interrupção legal da gestação no Município de residência da criança ou adolescente que buscar interrupção legal da gestação, será realizado o seu encaminhamento ao serviço mais próximo, responsabilizando-se as Secretarias Estaduais, Municipais ou do Distrito Federal de Saúde pelas despesas e todo aparato institucional de transferência, na forma das normativas que regulem o atendimento fora do domicílio.
§ 1º Os estados devem trabalhar para descentralizar os serviços de interrupção legal da gestação, especialmente em regiões de difícil acesso, assegurando que todas as mesorregiões tenham, ao menos, um centro capacitado para esses procedimentos.
§ 2º O encaminhamento para outra localidade deve ser uma exceção, e não a regra, priorizando-se o acesso local ao atendimento, de forma a garantir que todas as crianças e adolescentes vítimas de violência sexual possam exercer seus direitos de forma eficaz, com celeridade e respeito à sua dignidade.
§ 3º O encaminhamento a outro serviço será precedido de contato prévio com a equipe de saúde que receberá a criança ou adolescente, a fim de evitar a repetição de depoimentos e questionamentos desnecessários, prevenindo-se, assim, a revitimização.
§ 4º O encaminhamento deverá ser realizado no prazo máximo de 5 (cinco) dias, a fim de assegurar o acesso rápido ao atendimento e evitar a progressão do tempo gestacional, o que pode impactar negativamente na saúde física e mental da criança ou adolescente.
Seção III
Da Escuta Especializada
Art. 12. A escuta especializada será guiada de forma a não culpabilizar ou criminalizar a vítima da violência sexual, garantindo-se uma abordagem respeitosa e sensível à proteção de seus direitos, com o objetivo de proporcionar um ambiente seguro em que a criança ou adolescente possa se expressar livremente.
§ 1º Durante a escuta especializada, a criança ou adolescente deverá receber informações claras sobre todos os seus direitos, incluindo direitos sociais, serviços disponíveis, representação jurídica, medidas de proteção, reparação de danos e qualquer procedimento a que venha a ser submetida.
§ 2º A informação sobre direitos e serviços disponíveis inclui informações claras, precisas, baseadas na lei e em evidências científicas sobre a interrupção legal da gestação, não podendo a criança ou adolescente ser privada de informações sobre sua saúde e direitos sexuais e reprodutivos.
§ 3º Evitar-se-á a repetição da escuta especializada ou a realização de escutas sequenciais que podem configurar revitimização nos termos do art. 5º, II, do Decreto 9.603/2018.
Art. 13. Cabe aos órgãos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente garantir mecanismos de suporte à tomada de decisão informada durante o procedimento de escuta especializada, por meio, entre outros, da garantia de um ambiente acolhedor, que permita a expressão espontânea da criança ou adolescente, da presença de pessoas de confiança desta/e, da utilização de recursos lúdicos, da escuta ativa, da comunicação adaptada, do respeito ao tempo e ao ritmo da criança ou adolescente, do incentivo à realização de perguntas e do respeito ao silêncio.
CAPÍTULO III
DA ADOÇÃO DE MEDIDAS DE PROTEÇÃO, DA NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA E DAS COMUNICAÇÕES EXTERNAS
Art. 14. Os casos de suspeita ou confirmação de violência sexual contra crianças e adolescentes devem ser objeto de:
I – Comunicação ao Conselho Tutelar, ou, na sua ausência, das autoridades indicadas no art. 16;
II – Notificação Compulsória à Autoridade Sanitária;
III – Comunicação Sigilosa à Autoridade Policial, podendo haver identificação da criança somente nas situações elencadas no art. 17.
Parágrafo único. A notificação e as comunicações previstas neste capítulo não podem, em hipótese alguma, ser impostas como condições para o acesso a serviços e procedimentos de saúde, configurando-se tal prática como obstáculo indevido, passível de ser caracterizada como violência institucional.
Seção I
Da Comunicação ao Conselho Tutelar e Autoridade Policial
Art. 15. Identificada a situação de violência sexual, deverá ser efetuada a comunicação externa ao Conselho Tutelar para atuar no caso, a quem compete a adoção das providências cabíveis para atenção e proteção integral da criança ou adolescente, conforme o art. 13 do ECA.
§ 1º Os serviços de saúde deverão fazer a comunicação da situação de violência ao Conselho Tutelar por meio de um relatório sintético ou outro mecanismo de comunicação definido a nível local.
§ 2º A comunicação ao Conselho Tutelar ou a qualquer outro órgão do SGDCA deve atender ao princípio da proteção integral e, se causar risco à criança, pode ser postergada até que o risco seja mitigado.
Art. 16. Nos casos em que não houver Conselho Tutelar na localidade ou, por qualquer outra razão, o acionamento do referido órgão não for possível, a Defensoria Pública ou o Ministério Público, no exercício de sua competência para requerer a aplicação de medidas de proteção, poderão ser acionados.
Parágrafo único. O compartilhamento de informações sobre a criança ou o adolescente com a Defensoria Pública ou com o Ministério Público deverá conter, no mínimo, as mesmas informações previstas no art. 15, § 1º.
Art. 17. Todos os casos suspeitos ou confirmados de violência sexual contra crianças e adolescentes devem ser objeto de comunicação externa sigilosa, não identificada, às autoridades policiais, de maneira contínua e sistemática, com o objetivo de:
I- Contribuir para o conhecimento da magnitude das violências que afetam crianças e adolescentes, possibilitando a análise dos dados;
II- Fornecer subsídios para a definição e o aprimoramento de políticas públicas voltadas à prevenção, proteção e enfrentamento da violência sexual.
§ 1º Cabe ao Conselho Tutelar levar o caso identificado ao conhecimento do Ministério Público e, quando couber, solicitar a abertura de inquérito policial para adoção das medidas protetivas e identificação e responsabilização do agressor.
§ 2º Os serviços de saúde podem realizar a comunicação externa à autoridade policial, com a identificação da vítima, em caráter excepcional, em caso de risco à comunidade ou à vítima, a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável.
§ 3º Questões policiais e judiciais devem ser abordadas após o atendimento das necessidades de saúde da vítima (exame físico, procedimentos médicos indicados para o caso e a respectiva conduta).
Seção II
Da Notificação Compulsória à Autoridade Sanitária
Art. 18. Os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes devem ser objeto de notificação compulsória à autoridade sanitária feita de forma consolidada e com a preservação do sigilo das pacientes, buscando fornecer dados à vigilância epidemiológica e o apoio ao desenvolvimento de políticas públicas de enfrentamento à violência, inclusive a Rede de Cuidados em Saúde e de Proteção de Crianças e Adolescentes, não se caracterizando como um instrumento de denúncia.
Parágrafo único. A notificação da violência sexual deverá ser feita pelo serviço de saúde, por meio da Ficha de Notificação Individual de Violência Interpessoal e Autoprovocada ou outro instrumento que vier a ser proposto pela autoridade sanitária responsável.
Seção III
Dos Serviço de Acolhimento
Art. 19. A inclusão de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual em serviços de acolhimento é excepcional e provisório, não podendo ser utilizada como recurso para o impedimento do acesso ao serviço de interrupção legal da gestação.
Parágrafo único. Diante da necessidade de acolhimento devem ser adotadas as diligências necessárias para garantir o acesso ao serviço de interrupção legal da gestação, quando for o caso.
CAPÍTULO IV
DA PROTEÇÃO INTEGRAL, DO PODER FAMILIAR E DO CONSENTIMENTO
Seção I
Da Proteção à Privacidade
Art. 20. A garantia do sigilo profissional é um direito da criança e adolescente vítima de violência. Durante todo o atendimento à criança e à adolescente, será garantido o absoluto sigilo de sua identidade, de seus dados pessoais, manifestações de vontade, agendamentos e todas as informações compartilhadas a fim de garantir os cuidados necessários.
§ 1º É expressamente vedado aos atores do serviço que estiver atendendo a criança ou adolescente o compartilhamento de informações da criança ou adolescente com atores externos ao SGD, exceto sob expresso consentimento da criança ou adolescente, sendo permitido o compartilhamento dessas informações apenas nas hipóteses legais previstas, sob pena de responsabilização ética, civil e penal.
§ 2º A manutenção da confidencialidade das informações de saúde não impede o acionamento do Conselho Tutelar, conforme art. 15, e da Autoridade Policial conforme art. 17.
§ 3º Os profissionais de saúde devem garantir que sejam enviadas ao Conselho Tutelar apenas as informações estritamente necessárias para a apuração de situações de violência sexual, preservando a intimidade da criança ou adolescente em relação às informações compartilhadas com os profissionais de saúde, salvo em casos de requisição judicial de documentos médicos, como o prontuário.
§ 4º A criança e o adolescente possuem direito à autonomia, à privacidade e à confidencialidade no atendimento, de acordo com seu estágio de desenvolvimento, inclusive em relação a seus pais ou responsáveis legais, sendo prioritária a preservação de sua saúde e o seu bem-estar físico e psicológico.
Seção II
Do Consentimento e do Poder Familiar
Art. 21. É dever do Estado, da família e da sociedade respeitar a autonomia de crianças e adolescentes em relação ao exercício de seus direitos, abstendo-se de qualquer ato que constranja, ameace ou provoque medo, vergonha ou culpa em decorrência da decisão de interromper a gestação.
Parágrafo único. Consideram-se abusivos, atos praticados no exercício do poder familiar que exponham a criança ou adolescente a riscos à saúde, integridade física e psicológica, na contramão de seus superiores interesses.
Art. 22. A criança ou adolescente gestante tem o direito de expressar livremente e ter consideradas suas opiniões a respeito das opções legais relacionadas à gravidez.
Art. 23. Caso a criança ou o adolescente procure o serviço de saúde ou outros órgãos e instituições do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente manifestando o desejo de interromper a gestação sem a presença dos responsáveis legais, os profissionais responsáveis pelo atendimento devem consultar a criança ou o adolescente sobre a possibilidade de contatar os responsáveis legais ou um adulto de referência indicado pelo assistido.
Art. 24. Havendo concordância da criança ou adolescente em contatar os responsáveis legais, os profissionais responsáveis pelo atendimento devem adotar medidas para assegurar o comparecimento ao serviço, a fim de que possam acompanhar o atendimento e receber as devidas informações.
Art. 25. Se a presença dos responsáveis puder causar danos físicos, mentais ou sociais à criança ou adolescente, e se ela tiver capacidade de tomada de decisão, o profissional deve garantir que o procedimento de escuta, manifestação da vontade e quaisquer outros tratamentos ou cuidados, devidamente consentidos, sejam realizados sem qualquer impedimento.
Art. 26. Nos casos de divergência entre a vontade da criança e a dos genitores e/ou responsáveis, os profissionais do SGDCA devem proporcionar um ambiente acolhedor e apropriado para ouvir os pais ou responsáveis legais, sempre priorizando o apoio e o respeito à vontade expressa pela criança ou adolescente.
Parágrafo único. Persistindo a divergência, os profissionais devem acionar a Defensoria Pública e o Ministério Público para a promoção de orientações legais sobre os direitos da criança ou adolescente e os procedimentos a serem seguidos, adotando as medidas legais cabíveis, caso o conflito seja insuperável.
Art. 27. O exercício regular do poder familiar deve assegurar que crianças e adolescentes não sejam expostos a riscos à sua saúde física, mental e social, e os responsáveis legais devem ser informados sobre a importância de priorizar o melhor interesse da criança e da adolescente.
CAPÍTULO IV
DO ACESSO À JUSTIÇA E DO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA E INSTITUCIONAL
Seção I
Art. 28. Nos casos excepcionalíssimos em que haja procedimento judicial em decorrência de divergência insuperável entre a vontade da criança ou adolescente e de seus responsáveis legais, é direito das crianças e adolescentes:
I – A apreciação de seu caso de forma célere;
II – A garantia, com absoluta prioridade e precedência, de sua autonomia e de sua integridade física e psicológica, considerando sua vontade manifestada de forma livre e informada perante as instituições do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente;
III – Não ser exposta a novas escutas, depoimentos e outros procedimentos desnecessários;
IV – A apreciação de seu caso a partir de sua vontade manifestada e do paradigma da proteção integral, que reconhece a condição de sujeitos de direitos de crianças e adolescentes, com a abstenção de atos que deem prevalência à vontade dos pais ou responsáveis legais em detrimento da vontade manifestada pela criança ou adolescente, bem como de sua saúde e integridade física e psicológica;
V – O respeito à manifestação de vontade livre de qualquer coação, considerando-se situações de violência exercidas por familiares ou terceiros que tenham como objetivo obrigar a criança ou adolescente a levar adiante a gestação contra sua vontade.
Art. 29. Nos casos excepcionalíssimos em que haja procedimento judicial, é direito de todas as crianças e adolescentes o acesso a defensor/a público/a para buscar a garantia, com absoluta prioridade, da interrupção legal da gestação e para se informar sobre todos os seus direitos e contribuir para a garantia célere do procedimento.
§ 1º Em caso de conflitos entre a vontade expressa pela criança ou adolescente e seus responsáveis legais, é direito das crianças e adolescentes a assistência jurídica em todos os atos processuais, garantindo uma representação efetiva e um acompanhamento próximo e contínuo de todo o processo por defensor/a público/a, inclusive como Curador Especial. § 2º Nos casos mencionados no dispositivo acima, não há previsão legal para a figura de curadoria do feto, assegurando-se que a prioridade seja sempre a proteção e os direitos da criança ou adolescente gestante.
§ 3º A assistência jurídica às crianças e aos adolescentes não se submete a apuração de carência financeira, por sua especial condição de vulnerabilidade.
Art. 30. É direito de toda criança ou adolescente ser atendida no âmbito do Poder Judiciário por magistrados, servidores e técnicos responsáveis pela realização da escuta especializada e do depoimento especial capacitados em temáticas relativas aos direitos humanos, direitos de crianças e adolescentes, enfrentamento da violência sexual e direitos sexuais e reprodutivos.
Parágrafo único. A capacitação deverá incluir programas de formação e sensibilização sobre os marcos de proteção aos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes, com ênfase na importância de priorizar a escuta da criança e respeitar sua autonomia.
Seção II
Dos Obstáculos Indevidos
Art. 31. O acesso à interrupção legal da gestação não dependerá:
I – Da lavratura de boletim de ocorrência relativo à situação de violência sexual;
II – De decisão judicial autorizativa do procedimento;
III- Da comunicação ao Conselho Tutelar ou a outros órgãos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente;
IV – Da comunicação aos responsáveis legais quando isto puder ocasionar danos à criança ou adolescente, nos termos do Capítulo III, Seção II, nos casos em que houver suspeita de violência sexual ocorrida na família.
Art. 32. O limite de tempo gestacional para a realização do aborto não possui previsão legal, não devendo ser utilizado pelos serviços como instrumento de óbice para realização do procedimento. Tal parâmetro deve ser considerado exclusivamente para a escolha do método a ser empregado, em conformidade com evidências científicas e conforme recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Art. 33. É vedada a imposição de qualquer exigência que possa atrasar, afastar ou impedir o pleno exercício, pela criança ou adolescente, de seu direito fundamental à saúde e à liberdade.
Seção III
Do Enfrentamento a Violações de Direitos Contra a Criança e o(a) Adolescente
Art. 34. A objeção de consciência é um direito individual que não pode ser alegado por instituições que prestam serviços de saúde, devendo ser comunicada prévia e justificadamente à instituição pelos profissionais que a invocarem, a fim de possibilitar a organização da equipe profissional, apta a realizar a interrupção legal da gestação.
§ 1º Configura conduta discriminatória, inapta de ser caracterizada como objeção de consciência, a recusa em realizar a interrupção da gestação com base meramente na descrença em relação à palavra da vítima de violência sexual.
§ 2º Havendo objeção de consciência manifestada por profissional de saúde para a realização do procedimento, o serviço de saúde será responsável pela imediata indicação de outro profissional, garantindo que a criança ou adolescente não enfrente obstáculos a interrupção legal da gestação.
§ 3º Evitar-se-á a presença de profissionais objetores de consciência em equipes destinadas à prestação do serviço de interrupção legal da gestação, assegurando um atendimento contínuo e respeitoso aos direitos da criança e adolescente.
Art. 35. É vedado qualquer ato que vise humilhar, constranger, provocar medo ou vergonha na criança e adolescente que busca a interrupção legal da gestação, desrespeitando sua autonomia e com a intenção de obrigá-la a levar adiante a gestação contra sua vontade.
§ 1º Considera-se violência institucional, nos termos do art. 15-A da Lei nº 13.869/2019 e do art. 5º, I, do Decreto nº 9.603/2018, a imposição de barreiras não previstas em lei para o acesso de crianças e adolescentes ao abortamento legal por agentes públicos das instituições do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, passível de responsabilização penal, civil e administrativa.
§ 2º Considera-se violência psicológica, conforme o art 4º da Lei nº 13.431/2017, ou maus-tratos, nos termos do art. 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente, qualquer prática de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem e ridicularização contra a criança e adolescente que busca o acesso a interrupção gestacional legal, com o intuito de reduzir sua autonomia e forçá-la a levar adiante a gestação.
§ 3º A identificação de atos de violência institucional e psicológica contra a criança e adolescente deverá ser comunicada à Defensoria Pública, ao Ministério Público ou à polícia quando identificada por qualquer agente do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente.
Art. 36. As denúncias de violência institucional e psicológica devem ser encaminhadas às entidades de correição e fiscalização profissional dos agentes envolvidos, como os conselhos de fiscalização do exercício profissional, conforme a especialidade do agente ao qual o ato é imputado, aos Conselhos de Direitos e ao Ministério Público, nos casos em que as denúncias sejam atribuídas a conselheiros (as) tutelares, ao Conselho Nacional de Justiça, nos casos em que as denúncias sejam atribuídas a magistrados (as), e à Defensoria Pública, para que seja assegurada assistência jurídica na reparação integral para a criança ou adolescente.
CAPÍTULO V
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 37. Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.
MARINA DE POL PONIWAS
Presidente Conselho