Institui regras para a realização do exame criminológico para fins de progressão de regime prisional no âmbito de execução penal no país e revoga disposições contrárias.
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA, no uso das atribuições legais, conferidas pelos artigos 64, inciso I, da Lei nº 7.210/1984, e 69 do Decreto nº 11.348, de 1º de janeiro de 2023,
Considerando o disposto na Lei nº 14.843, de 11 de abril de 2024, que altera a Lei nº 7.210/1984, de 11 de julho de 1984, em especial, exigindo a compulsoriedade do exame criminológico para todas as hipóteses de progressão de regime;
Considerando que a alteração legislativa promovida pela Lei nº 14.843, de 11 de abril de 2024, ao tornar o exame criminológico obrigatório e indiscriminado, inovou ao não repetir a ressalva contida na última parte, do parágrafo único, do artigo 112 da LEP, em sua redação original publicada no DOU de 13.07.1984;
Considerando os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF), da legalidade (art. 5º, inc. LIV, da CF), da humanidade (art. 5º, XLVII e XLIX, da CF), da individualização das penas (art. 5º, inciso XLVI e XLVII, da CF);
Considerando o debate acerca da possível inconstitucionalidade formal da Lei nº 14.843, de 11 de abril de 2024, ante a ausência de prévio estudo de impacto financeiro e orçamentário, com violação ao disposto no art. 113 do ADCT, bem como os dados encaminhados no relatório do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (DMF), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), feito a pedido do Supremo Tribunal Federal (STF) para instruir os julgamentos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, onde se prevê-se um custo anual de até R$ 170 milhões de reais, apenas para composição das equipes técnicas aptas à realização dos exames e o custo anual (e adicional) de R$ 6 bilhões de reais para a manutenção das pessoas que terão o prolongamento do tempo de encarceramento em razão dos inevitáveis atrasos nas futuras progressões de regime diante da nova exigência legal;
Considerando que até a superveniência de decisão judicial acerca da constitucionalidade da norma, ela deve ser observada;
Considerando que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5º, inciso XL, da Constituição);
Considerando os direitos constitucionais de ampla defesa e contra a autoincriminação, esculpidos no artigo 5º, incisos LXIII e LV, da Carta Maior;
Considerando a vedação constitucional a penas de caráter perpétuo e crueis, contida no artigo 5º, inciso XLVII, alíneas “b” e “e”;
Considerando o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347;
Considerando o enunciado da Súmula Vinculante nº 56 e o Recurso Extraordinário nº 641.320/RS;
Considerando as normativas de Direito Internacional de Direitos Humanos, do sistema global de proteção, aplicáveis à matéria de execução penal, tal como a Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 10 de dezembro de 1984, e seu Protocolo Facultativo, de 18 de dezembro de 2002; as Regras Mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos (Regras de Mandela); e as Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok);
Considerando as normativas de Direito Internacional de Direitos Humanos, do sistema americano de proteção, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 9 de dezembro de 1985;
Considerando a Lei Federal nº 12.847, de 2 de agosto de 2013, que Instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura;
Considerando o Código de Ética Profissional do/a Psicólogo/a e a Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) nº 06/2019;
Considerando a Lei 8662/93, que regulamenta a profissão de Assistente Social, notadamente em seu art. 5 inciso IV, e o Código de Ética Profissional do (a) Assistente Social, instituído pela Resolução CFESS nº 273/93, notadamente em seus Princípios Fundamentais I, II e X e em seus artigos 2 alíneas a, b, d, g, h, i, art. 3 alínea c; art. 5, alíneas a, b, c, d, e, f, g, h; art. 6, alíneas a, c; artigo 7, alíneas a, b, c, d; art. 8, alíneas a, b, c, d; art. 10, alíneas a, b, d; art. 11, alínea c; art. 13, alínea a, b.; art. 15; art. 16; art. 17, art. 18 e seu Parágrafo Único; art. 19, alíneas a, b; art. 20, alínea a, b
Considerando o Código de Ética do(a) Assistente Social (Resolução Cfess 543/1993), a Lei de Regulamentação 882/1993 e a Resolução Cfess 557/2009;
Considerando que a norma que institui a obrigatoriedade do exame criminológico é de inafastável conteúdo material, por conferir maior rigor na execução da pena e afetar o estado de liberdade do condenado;
Considerando que a subjetividade humana não se reduz a classificações tipológicas definitivas, nem se subsome a quadros estáticos ou imutáveis que possam ser objeto de análise objetiva;
Considerando que a dignidade da pessoa humana é elemento constitutivo do regime democrático (art. 1º, inciso III, da Constituição), contemplando as múltiplas formas de ser no mundo sem qualquer forma de discriminação;
Considerando que um direito penal assim orientado está constitucionalmente proibido de punir a pessoa em razão de suas condições pessoais, em especial de uma suposta periculosidade derivada de aspectos da subjetividade humana;
Considerando que a Constituição não prevê a periculosidade como princípio orientador válido no sistema punitivo, restringindo a aplicação da sanção penal com base exclusivamente na culpabilidade do réu (art. 5º, inciso XLV);
Considerando que, nesses termos, a Constituição estabelece as bases para o direito penal do fato em detrimento de um suposto direito penal do autor, sistema que evidentemente engloba o momento em que se executa a sentença penal condenatória;
Considerando que a teoria da periculosidade, proveniente do positivismo criminológico do Século XIX, embora arraigada em práticas punitivas e no imaginário popular, há muito não se sustenta cientificamente, tendo sido superada inclusive no campo da medida de segurança, como se viu com a edição, pelo Conselho Nacional de Justiça, da Resolução nº 487/2023, que determinou o encerramento dos manicômios judiciários em todo o Brasil;
Considerando os debates estabelecidos no Grupo de Trabalho criado pela Portaria CNPCP/MJSP nº 69, de 22 de maio de 2024, resolve;
Art. 1º As regras instituídas na presente Resolução são obrigatórias para a realização do exame criminológico para fins de progressão prisional.
§ 1º A obrigatoriedade da realização do exame criminológico, para fins de progressão prisional, é aplicável aos condenados por fatos posteriores à promulgação da Lei 14.843 de 2024, nos termos do art. 5, XL, da Constituição da República.
§ 2º A inobservância às regras instituídas na presente Resolução invalida o exame criminológico e impossibilita seu uso para impedir a progressão de regime prisional.
Art. 2º O exame criminológico deverá ser concluído com a antecedência mínima de 30 (trinta) dias da data prevista para a progressão de regime prisional, a fim de que o tempo utilizado para a sua a concretização do direito.
§ 1º O atraso ou a produção não retarde produção em desconformidade com as regras estabelecidas pela presente Resolução não autorizará a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso;
§ 2º A pendência da realização do exame criminológico nos termos dessa Resolução não impede a concessão do indulto ou de qualquer outro benefício prisional.
Art. 3º O exame criminológico deverá ser realizado por uma equipe composta de 2 (dois) chefes de serviço e 1 (um) psiquiatra, 1 (um) psicólogo e 1 (um) assistente social, e estes três últimos deverão possuir:
I – diploma de conclusão de ensino superior em estabelecimento de ensino credenciado pelo Ministério da Educação, em sua respectiva área;
II – registro profissional em seus respectivos órgãos de classe.
§ 1º As opiniões do psiquiatra, psicólogo e assistente social possuirão a mesma importância técnica na elaboração do exame criminológico.
§ 2º Em caso de opiniões contrárias entre os membros do corpo técnico, deverão as razões da divergência serem expressas no laudo criminológico, justificando o posicionamento discordante.
§ 3º Nas composições das equipes responsáveis pela realização de exames criminológicos não se admitirá a inclusão de profissionais das Equipes de Atenção Primária prisional (eAPP), considerando o conflito de interesses das funções periciais e das ações de atenção primária preconizadas na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP).
§ 4º É vedada a composição das equipes mencionadas no caput por profissionais que tenham sido admitidos em regime temporário, especial ou precário, com finalidade exclusiva de realização de exame criminológico.
Art. 4º Os profissionais de que trata esta Resolução estão sujeitos às regras legais de impedimento e de suspeição previstas no Código de Processo Penal, que se aplicam membros da Magistratura, Ministério Público e Auxiliares da Justiça.
Art. 5º O Ministério Público e a defesa deverão ser previamente intimados para, se quiserem, elaborarem quesitos à realização do exame criminológico, arguir a suspeição ou impedimento de membro da Comissão Técnica, ou apontar desconformidade com os demais termos da presente Resolução, se for o caso.
Art. 6º É obrigatória a presença de defesa técnica na realização do exame criminológico, sendo garantido ao examinado o direito ao silêncio e à afirmação de inocência, que não poderão ser valorados em seu desfavor.
Art. 7º A partir de acompanhamento periódico à pessoa apenada, o exame criminológico deverá produzir relatório circunstanciado e descritivo, com:
I – duas ou mais entrevistas presenciais com o examinado;
II – uma ou mais entrevistas presenciais com pessoas do convívio do examinado, como familiares, outros apenados ou funcionários do estabelecimento penal;
Parágrafo único. Não será admitido exame criminológico realizado mediante única entrevista com a pessoa apenada e/ou mediante a aplicação de formulários estruturados, que priorizem a coleta de dados meramente objetivos.
Art. 8º O exame criminológico deverá:
I – remeter-se, de modo fundamentado, ao exame criminológico de ingresso, realizado nos termos do artigo 8º da LEP;
II – respeitar as resoluções e orientações técnico-éticas dos respectivos conselhos profissionais no tocante à produção de documentos escritos, atuação técnica no sistema prisional e nas relações com a justiça;
III – declarar a metodologia utilizada;
IV – considerar a realidade histórica e social dos sujeitos a serem avaliados;
V – Considerar as condições objetivas relativas à realidade ins titucional;
VI – considerar as determinações sociais e subjetivas relativas à vivência do cárcere e seus danos na condição de saúde, saúde mental e condições sociais da pessoa apenada e seus familiares;
VII – considerar o caráter informativo do relatório circunstanciado e descritivo, com a apresentação dos processos de trabalho desenvolvidos ou em desenvolvimento pelos profissionais em relação à pessoa apenada;
Art. 9º O exame criminológico não poderá:
I – sugerir prognósticos de risco de reincidência;
II – empregar conceitos ou termos indeterminados, especialmente de conteúdo estigmatizante;
III – estabelecer nexos causais pautados no determinismo do binômio delitodelinquente;
IV – utilizar como fundamento:
a) a gravidade abstrata do delito do qual o custodiado foi acusado; as circunstâncias, ainda que concretas, do delito do qual o custodiado foi acusado;
b) o tempo remanescente de cumprimento de pena;
V – sugerir classificação de segurança da pessoa examinada;
Art. 10. É vedada a utilização total ou parcial de inteligência artificial generativa ou tecnologia preditiva na elaboração dos exames criminológicos.
Art. 11. O laudo técnico deverá ser apresentado documentalmente, de forma escrita, sendo juntado aos respectivos autos de Execução penal da pessoa examinada.
Art. 12. O exame criminológico não vincula o Juízo de Execução Penal.
Membros do Grupo de Trabalho
I – Membros do CNPCP
a) Conselheiro Maurício Stegemann Dieter, exercendo a função de presidente;b) Conselheiro Paulo Augusto Oliveira Irion, na qualidade de relator;
c) Conselheiro Davi Márcio Prado Silva;
II – Convidados externos:
a) Haroldo Caetano da Silva – Promotor de Justiça do Estado de Goiás;
b) Alessandra Santos de Almeida – Vice-Presidente do Conselho Federal de Psicologia;
c) Adriana Eiko Matsumoto – Professora Adjunta da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP;
d) Elisabete Borgianni – Membro do Conselho de especialistas da Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos da Área Sociojurídica do Brasil;
e) Kelly Rodrigues Melatti – Conselheira do Conselho Federal de Serviço Social;
f) Jussara de Lima Ferreira – Conselheira do Conselho Federal de Serviço Social; e
DOUGLAS DE MELO MARTINS