Professora e família de ex-vereador ganham indenização por perseguições e prisões sofridas

Em processos separados, duas vítimas da ditadura militar tiveram reconhecido o direito de receber uma indenização por danos morais em decorrência das perseguições e prisões de cunho político que sofreram. Os familiares de um ex-vereador, já falecido, e uma professora receberão R$ 100 mil da União, referente a cada vítima. As sentenças, publicadas nos dias 6 e 11/9, são dos juízes Marcelo Cardozo da Silva e Fábio Dutra Lucarelli, respectivamente.

A esposa e os filhos do ex-vereador do município gaúcho de Tenente Portela narraram que ele era um líder político na cidade e foi eleito pelo Partido Trabalhista Brasileiro, ligado ao ex-governador Leonel Brizola, para o mandato de 1964 a 1968, e pelo Movimento Democrático Brasileiro, para o mandato de 1973 a 1976. Em 1968, foi eleito prefeito de Miraguí (RS), mas teve seus direitos políticos suspensos por força do Ato Institucional nº 5.

Os familiares afirmaram que ele sofreu perseguições, pressões, humilhações, prisões, processos e condenações injustas, sendo difamado publicamente como comunista e agitador. Ele foi preso em diversas ocasiões após ser acusado de integrar o “Grupo dos Onze” e foi torturado, sofrendo espancamento e choques elétricos.

Já a professora, que era militante política e atuava na educação da população rural, contou ter sido presa em maio de 1970, quando estava na casa dos sogros em Nova Aurora (PR). Na ocasião, a residência foi invadida por policiais e agentes do hoje extinto Departamento de Ordem Política e Social (Dops), e ela foi violentamente torturada com choques elétricos, golpes com toalhas molhadas, “pau-de-arara”, crueldades e torturas psicológicas, tudo ocorrendo na presença do marido e de seus sogros.

Segundo ela, foi levada ao Batalhão de Fronteira de Foz do Iguaçu, onde foi impedida de comunicar-se com o ambiente externo e seguiu sendo torturada por agentes do Dops e integrantes do Exército Brasileiro. Narrou que estava grávida e que acabou abortando dentro da cela em função das violências sofridas. Após cinco meses, foi transferida para Porto Alegre sem o conhecimento de sua família e sendo ameaçada de ser jogada para fora do avião.

A mulher afirmou que a tortura só foi interrompida quando a família descobriu o local em que estava presa e recebeu autorização para visitá-la. Em seguida, foi transferida para um presídio no Paraná, onde permaneceu mais seis meses, antes de passar para o regime de prisão domiciliar. Ela contou que se exilou no Chile, em 1972, e, no seguinte, se mudou para França, onde permaneceu até 1985.

Em sua defesa, a União argumentou que os autores já foram indenizados pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e receberam indenização de R$ 100 mil paga em prestação única. Sustentou que a indenização por danos morais seria inacumulável com aquela já recebida e que não teria ficado comprovado o dano moral.

Ditadura Militar e Redemocratização

O juiz federal Marcelo Cardozo da Silva contextualizou o período vivenciado no Brasil durante o regime militar instaurado entre os anos de 1964 e 1985 como um “um período de forte repressão política e violência institucional, de violação massiva de direitos fundamentais, de graves desrespeitos e destruição dos pilares necessários ao funcionamento de uma sociedade democrática e plural”. Ele pontuou que o sistema político instituído foi se alterando e consolidando, ao longo do tempo, com a promulgação de arcabouços jurídicos de legitimação do agir estatal, conhecidos como Atos Institucionais, que foram instrumentos normativos estruturantes de uma legalidade de exceção.

“Progressivamente, o regime ditatorial foi se intensificando. O uso da violência, de prisões, da tortura, de perseguições injustas e processos sumários foi-se ampliando, buscando-se, para tanto, justificações tais como supostas ameaças comunistas e alegadas subversões da ordem social e dos valores da sociedade”. O magistrado destacou que a tortura constituía um modo de atuação regular do Estado, havendo mortes em interrogatórios e proteção oficial para os torturadores.

De acordo com Silva, o período de transição da ditadura para o regime democrático contou com muitos normativos significativos, incluindo a Lei da Anistia e a Constituição Federal de 1988. Em 2002, foi criada a Comissão de Anistia com a finalidade de examinar os pedidos de concessão de direitos de caráter reparatório formulados por perseguidos políticos durante a ditadura militar, assessorando o Ministro de Estado em suas decisões.

Ele lembrou ainda que, em 2011, foi criada a Comissão Nacional da Verdade com o objetivo investigar violações a direitos humanos ocorridas durante a ditadura, com poderes para convocar testemunhas, requisitar documentos e apurar os casos. Os trabalhos da comissão foram encerrados em 2014, com a apresentação do relatório.

Dano moral

O juiz federal Fábio Dutra Lucarelli reconheceu que a Lei do Regime Jurídico do Anistiado Político veda a acumulação de indenizações ou outros benefícios com o mesmo fundamento. Entretanto, observou que não há proibição legal para o pedido de indenização por danos morais decorrentes dos traumas inerentes aos crimes perpetrados durante o regime militar. “São verbas indenizatórias de naturezas absolutamente diversas. Enquanto a recomposição patrimonial, que tem previsão legal na Lei nº 10.559/2002, alcançada, entre outros, ao servidor, injustamente perseguido e demitido, seja de natureza material, a indenização, a título de danos morais, pretende recompensar as perdas sofridas pela agressão aos direitos de personalidade”, caracterizados pelas dores, sofrimentos e humilhações decorrentes da perseguição e prisões sofridas, todas de caráter político que teve de suportar.

“O fundamento constitucional dos direitos de personalidade é precisamente a Dignidade da Pessoa Humana, enquanto princípio fundamental de nossa Ordem jurídico-política, esculpido no art. 1º, caput e inciso III, da Carta de 1988. Os objetos dos direitos da personalidade se traduzem em tudo aquilo que disser respeito à natureza do ser humano, como, por exemplo, a vida, a liberdade (de pensamento, religiosa, social, filosófica, entre outras modalidades), além da proteção de seus dados pessoais, e o que mais importa, ao caso presente, às suas integridades física e moral, honra e imagem, privacidade, intimidade, vida familiar, auto-estima, igualdade, segurança, isso tudo de modo exemplificativo.”

Casos concretos

Ao analisar os casos da professora e do ex-vereador, os juízes concluíram que as provas apresentadas comprovaram que eles foram vítimas de perseguições e de prisões praticados por agentes do Estado por motivações políticas, o que resultou em danos morais.

Silva ainda destacou que “o reconhecimento da perpetração de violações a direitos humanos de um anistiado político ultrapassa o nível puramente individual. Não se trata apenas de responsabilizar o Estado civilmente para que ele pague uma quantia devida a um cidadão específico. Cuida-se também de oportunidade para a reafirmação do compromisso ético com os princípios democráticos, de modo a que práticas como as verificadas durante a ditadura militar nunca mais se repitam”.

Os magistrados julgaram procedentes as duas ações, condenando a União ao pagamento de R$ 100 mil por danos morais à professora e aos familiares do ex-vereador. Cabe recurso ao TRF4.

https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=27489

TRF4 | JFRS

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