Carlos Frederico Vasconcellos Monteiro Rosa – Professor de Direito Processual Penal (UNINABUCO – Recife). Mestrando em Direitos Humanos (UFPE). Especialista em Direito Penal e Processual Penal.
Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar como a memória institucional influencia, tanto no que diz respeito ao agir do policial, quanto no que a sociedade espera do trabalho desses profissionais. Tratamos também de analisar de que maneira, consciente ou inconscientemente, o agente de segurança pública se utiliza do escudo ético como um mecanismo de compensação psicológica para se justificar por comportamentos que são incompatíveis com o sentido da polícia em um Estado Democrático de Direito, mas que são aceitos pela sociedade, justamente, por fazerem parte do imaginário coletivo criado em torno do estereótipo policial. Para isso, buscamos entender a figura do “ser” policialesco e a relação desse ator social com os conceitos de memória institucional, escudo ético e direitos humanos. Neste contexto, examinamos como a presença desses elementos dificulta a adaptação da polícia ao modelo democrático, mantendo sempre vivo em sua atuação comportamentos autoritários que afastam a polícia de seu primordial sentido que é a salvaguarda da vida e a proteção da sociedade para que direitos individuais e coletivos não sejam violados. Ao final, verificamos como pessoas comuns que exercem vários papéis sociais ao incorporarem a função de policial se transformam e passam agir de maneira estereotipada, bem como o quanto essa mutação é sistemática e tem se perpetuado ao longo de gerações impedindo que as instituições policiais realizem mudanças profundas que as aproxime de seu real sentido em uma sociedade democrática.
Palavras-chave: Polícia; Segurança Pública; Direitos Humanos; Memória Institucional; Escudo Ético.
a. Primeiras palavras
“A virtude moral é uma consequência do hábito. Nós nos tornamos os que
fazemos repetidamente. Ou seja: nós nos tornamos justos ao praticarmos atos
justos, controlados ao praticarmos atos de autocontrole, corajosos ao praticarmos
atos de bravura.”
Aristóteles
A relação entre memória institucional, democracia e o agir do policial é o foco de análise desse artigo. Considerando que polícia e sociedade se estruturam sob elementos simbólicos de tradição totalitária e que a solidificação de princípios democráticos para uma e outra, passam por todo um contexto de reelaboração significativa e simbólica, tratamos aqui de acessar os elementos de fundo que justificam a violência e as ações descabidas realizadas por uma e apoiadas por outra, assim como os elementos sob os quais elaboramos novas perspectivas éticas para ambas.
Nesse ponto, analisamos o que chamamos de escudo ético, isso como um mecanismo de compensação psicológica utilizado pelas forças de segurança para se autoconvencer ou mesmo justificar comportamentos incompatíveis com o sentido da polícia em um Estado Democrático de Direito. O que é relevante na medida em que atentamos para o distanciamento entre a praxis do trabalho policial vigente entre nós, por vezes guiado por atitudes de profundo desrespeito ao outro, e o sentido ético constitucionalmente definido ao agir policial numa democracia.
A ideia é analisar o “ser policialesco”, como estereótipo do agente policial/justiceiro, sua relação com a memória institucional ainda vigente em nossas corporações e os mecanismos de isenção de responsabilidade que aqui chamamos de escudo ético. A partir disso, teceremos a aproximação entre Segurança Pública e Direitos Humanos, na prerrogativa de que num estado democrático essas são indissociáveis.
A ideia é que posterior às analises se consiga visualizar com relativa segurança conceitual em que medida essas são uma só e a mesma coisa, embora todo jogo de narrativas que as tentam colocar em lados opostos.
Para essa tarefa, utilizamos como referencial teórico: as teses centrais de Emmanuel Levinas e de Enrique Dussel, no modo como esses tratam da totalidade e das muitas ameaças à alteridade em nosso tempo; a definição de memória institucional de HenriBergson; o experimento de Philip Zimbardo denominado “Efeito Lúcifer” e o conceito de “escudo ético” desenvolvido pelo historiador Frederico Pernambucano de Mello.
b. Memória institucional e escudo ético
O agir policial e sua atuação junto à sociedade, bem como a expectativa da sociedade em relação à polícia, estão permeados por estereótipos que percebemos ser difíceis de quebrar, pois possuem raízes profundas e difíceis de serem acessadas, como se tais comportamentos fossem intrínsecos a atividade policial.
Explica Soares:
As estruturas organizacionais das polícias trazem consigo conteúdos políticos, metas naturalmente derivadas das formas de funcionamento, rotinas inerciais que emanam das estruturas como se lhes fossem inerentes, pela mediação de valores e tradições corporativas (2019, p. 35).
O comportamento, de maneira geral, apresenta-se através das ações, que podem ser percebidas como boas ou más. Porém, tanto essa percepção quanto seus fatos geradores estão ligados aos papeis sociais(10 desempenhados pelo sujeito, despertando nossa atenção, principalmente, o comportamento ou o que aqui chamamos de agir, que está relacionado ao trabalho policial.
O professor e psicólogo norte americano, Philip Zimbardo, desenvolveu um trabalho com um grupo de estudantes da Universidade de Stanford cujo objetivo era entender como as pessoas boas se tornam más. Esse experimento ficou conhecido como “Efeito Lúcifer” e se transformou em um livro.
Nessa pesquisa, Zimbardo usou os porões da universidade para simular o ambiente de uma unidade prisional e analisar o comportamento dos carcereiros e dos presos.
Então, como funcionou esse experimento? 24 alunos espontaneamente selecionados, todos sem qualquer histórico de violência, uso de entorpecentes ou antecedes criminais, foram colocados dentro do porão da universidade, onde metade deles representaram os guardas da prisão e a outra metade os apenados. Os guardas estavam devidamente fardados, ficavam fora das celas e os presos ficavam dentro das celas, todos – presos e guardas – devidamente orientados quanto aos modos de agir de cada um ao assumir aquele papel social.
No entanto, em pouco tempo foi possível observar que a conduta de cada um foi mudando de maneira drástica, e comportamentos aterradores começaram a ser praticados, principalmente no que se refere aos guardas, como graves abusos, atitudes descontroladas, arbitrárias e humilhantes para com os que ali atuavam como presos, com evidentes violações de direitos humanos, enquanto que estes, assumiam uma condição de inferioridade e aceitavam o tratamento degradante. A situação ficou tão fora de controle que o experimento teve que ser interrompido muito antes do tempo estipulado inicialmente pelo professor.
Com relação ao experimento, disse Zimbardo:
A força propulsora deste livro foi a necessidade de entender melhor e como o porquê dos abusos físicos e psicológicos perpetrados em prisioneiros pela polícia Militar do Exército dos Estados Unidos, na prisão de Abu Ghraib, no Iraque. (…) A razão pela qual fiquei chocado, mas não surpreso, pelas imagens e histórias de abusos dos prisioneiros na “pequena loja de horrores” de Abu Ghraib, é porque eu já havia presenciado algo similar. Três décadas antes, testemunhara cenas sinistramente similares, que se desenrolaram em um projeto que dirigi e planejei: prisioneiros nus, algemados, com sacos em suas cabeças, guardas pisando em suas costas enquanto estes faziam flexões, guardas humilhando sexualmente os prisioneiros, e estes sofrendo de extremo desgaste. (…) Os universitários interpretando guardas e prisioneiros em um experimento de falsa prisão, realizado na Universidade de Stanford, no verão de 1971, estavam refletidos nos guardas reais e na prisão real no Iraque, em 2003. Eu não apenas tinha visto tais acontecimentos, como fui responsável por criar as condições que permitiram que os abusos vicejassem. Como principal investigador do projeto, planejei o experimento que aleatoriamente designou universitários normais, sadios e inteligentes para representar os papéis de guardas ou de prisioneiros, em um ambiente que simulava uma prisão de modo realista, onde deveriam viver e trabalhar por diversas semanas (2019, p.41-43).
Desse experimento, podemos identificar a semelhança com o comportamento da polícia, bem como com a imagem e a expectativa de comportamento que a sociedade tem em relação aos policiais. Conforme mostra o professor Zimbardo, os indivíduos têm no seu imaginário um estereótipo comportamental tanto com relação aos carcereiros quanto com relação aos presos, que se externaliza quando eles assumem esses papeis.
Analogamente acontece com relação ao estereótipo criado em torno do policial, ou seja, para sociedade, o sujeito ao desempenhar tal papel social deve agir conforme a ficção que foi criada ao longo do tempo no imaginário popular de violência e truculência, como disse Soares:
Nesse quadro sombrio, marcham nossas polícias militares, e também as civis, reproduzindo inercialmente suas velhas práticas, em geral ineficientes, além de muitas vezes brutais, sem darem sinais de crise terminal. Pelo menos, sinais ostensivos e públicos, porque os internos se acumulam e agravam (2019, p. 41).
Não podemos desconsiderar, claro, que muitos desses comportamentos atuais são frutos de ações que realmente aconteceram em outro momento da história, ou seja, em outra época, dentro de um outro contexto político-social, mas que se perpetuam mesmo não fazendo mais sentido, como por exemplo, não são raras as situações em que é possível perceber o quanto o comportamento da polícia brasileira é permeado pelas heranças da ditadura militar. Como chama atenção Soares:
Se a sociedade, em seus mais diversos segmentos, está descontente, pelas mais variadas razões, por vezes contraditórias, e se não há sustentação majoritária nas próprias instituições policiais, por que o país permanece convivendo com a arquitetura institucional arcaica, legada da ditadura? Afinal, a dimensão organizacional é a chave para mudanças de comportamento (2019, p. 41).
Como professor no curso de formação de policiais civis em Pernambuco, percebo isso empiricamente. Alunos que estão no curso de formação, que é etapa do concurso, portanto ainda não são policiais, agem de maneira caricata, sob a perspectiva que lhes é construída de como deve agir um indivíduo ao assumir o papel social de policial, bem como refletindo, muitas vezes, suas experiências vividas na comunidade com relação às ações policiais, propagando assim um discurso de violência e ódio.
Essa imagem que a sociedade brasileira tem da polícia é retratada de diversas formas, como por exemplo, através da música, como podemos conferir na letra de “Veraneio Vascaína” composta por Renato Russo e Flávio Lemos:
Cuidado, pessoal, lá vem vindo a Veraneio
Toda pintada de preto, branco, cinza e vermelho
Com números do lado, dentro dois ou três tarados
Assassinos armados, uniformizados
Veraneio vascaína vem dobrando a esquina
Porque pobre quando nasce com instinto assassino
Sabe o que vai ser quando crescer desde menino
Ladrão pra roubar, marginal pra matar
Papai, eu quero ser policial quando eu crescer
Cuidado, pessoal, lá vem vindo a Veraneio
Toda pintada de preto, branco, cinza e vermelho
Com números do lado, dentro dois ou três tarados
Assassinos armados, uniformizados
Veraneio vascaína vem dobrando a esquina
Se eles vêm com fogo em cima, é melhor sair da frente
Tanto faz, ninguém se importa se você é inocente
Com uma arma na mão eu boto fogo no país
E não vai ter problema, eu sei, estou do lado da lei
Cuidado, pessoal, lá vem vindo a Veraneio
Toda pintada de preto, branco, cinza e vermelho
Com números do lado, dentro dois ou três tarados
Assassinos armados, uniformizados
Veraneio vascaína vem dobrando a esquina
Veraneio vascaína vem dobrando a esquina
Veraneio vascaína vem dobrando a esquina
Mesmo com a enorme insatisfação declarada tanto pela sociedade quanto pelos próprios policiais com relação às estruturas organizacionais das polícias no Brasil, conforme apresentou Soares: “mais de 70% dos policiais e dos demais profissionais de segurança pública, em todo o pais, consideram falido o atual modelo” (2019, p. 41), e com toda dificuldade enfrentada por esses profissionais, percebe-se o quanto parece intransponível a barreira que precisa ser superada no que diz respeito ao reconhecimento de toda desumanização do universo que constitui o trabalho policial e consequentemente seja possível uma mudança estrutural profunda no sentido democrático.
Entendemos que essa resistência à mudança e a conservação desse comportamento da polícia para com a sociedade, bem como a forma como as pessoas da sociedade enxergam os profissionais de segurança pública, fazem parte do que Bergson chama de memória institucional, qual seja, “a cultura, os comportamentos, os símbolos, a identidade e a comunicação, o conjunto de elementos que formam a personalidade de uma empresa ou instituição, são os grandes pilares da memória” (2006, p. 111). Dito de outra forma, é o elemento responsável pela solidificação de valores, costumes e tradições as quais constroem a base da formação da identidade de uma organização, com consequências diretas sobre sua imagem, reputação e membros.
Bertrand Jouvenel corrobora com esse conceito ao mostrar o quanto é difícil mudar um comportamento tido como típico dentro de uma estrutura social:
A conduta dos indivíduos é guiada bem menos por forças que os pressionam do exterior do que por um regulador invisível que, do interior, determina suas ações. Cada personagem que ocupa numa sociedade um dado lugar, só muito excecionalmente, se afasta de um comportamento típico.
Regularidade causada por um sistema de crenças e obrigações profundamente incorporado à natureza do homem social (2010, p. 245).
Neste sentido, podemos observar de maneira empírica e reiterada que se mudam os processos seletivos, elevam-se as exigências para ocupação dos cargos, mudam-se governos e ideologias, mas indivíduos que ingressam na polícia, em pouco tempo, estão se comportando exatamente igual aos chamados, no jargão policial, “antigões”, que são seus antecessores na instituição, e assim, toda engrenagem volta a funcionar no mesmo jeito, com os mesmos vícios, com os mesmos comportamentos “policialescos”, com os mesmos sofrimentos e as estatísticas negativas só fazem crescer.
O historiador Frederico Pernambucano de Mello, considerado um dos maiores pesquisadores sobre o cangaço do mundo, desenvolveu um conceito denominado de “escudo ético”, que seria uma espécie de contrapartida ético-psíquica adotada pelos cangaceiros para justificar as barbáries por eles cometidas. Por analogia, podemos aplicar esse conceito à realidade policial para tentar compreender melhor essa dinâmica que envolve o “ser policialesco”.
Ao falar sobre o escudo ético, Mello se refere ao comportamento de um determinado grupo de pessoas – bom ou mau -, mas que é o comportamento que o resto da sociedade espera dele. Nos seus estudos, ele trata especificamente do agir relacionado aos cangaceiros e os tipos de cangaceiros, inclusive as mudanças de tipo, ou seja, aquele que entrava para o mundo do cangaço, assumia o papel social de cangaceiro com um determinado objetivo e mudava seu comportamento e objetivos sob a égide do escudo ético, esses casos são chamados pelo autor de transtípicos.
Assim, esse comportamento digamos “típico”, embora muitas vezes abomináveis aos olhos e aos padrões de civilidade, são o substrato para a construção da imagem dos grupos.
Explica Mello:
A elaboração ao escudo ético pode ser mesmo considerada sinal indicativo da verificação de transtipicidade neste sentido, valendo que se diga dele ser fenômeno de ocorrência quase infalível em tal situação. Mas será absurdo que se esteja falando em preservação de imagem e outras sutilezas psicológicas com relação a homens comumente considerados “rudes”, “cruéis”, “brutos”, “toscos”, insensíveis” etc.? (2011, p. 131-132).
Desta maneira, ao criar essa suposta proteção ética, o individuo se esconde por trás de uma espécie de escudo justificador que, tanto para ele quanto para sociedade, enseja em aceitação de atos bárbaros e encobre as ações abomináveis que, no inconsciente coletivo, adquire status de normalidade, como se fosse uma conduta inerente àquela figura quase que mitificada criada no imaginário popular.
Como aduz Mello:
A necessidade de justificar-se aos próprios olhos e aos de terceiros levava o cangaceiro a assoalhar o seu desejo de vingança a sua missão pretensamente ética, a verdadeira obrigação de fazer correr o sangue dos seus ofensores. O folclore heroico, em suas variadas formas de expressão, imortalizava-o, omitindo eventuais covardias ou perversidades e enaltecendo um outro grupo de gesto de bravura. (2011, p. 127).
Apreendido o conceito, é possível fazer uma analogia com o agir policial e o papel social do indivíduo quando se torna um agente de segurança pública. Podemos verificar que muitos estereótipos estão envolvidos no comportamento do policial, bem como percebe-se uma espécie de comportamento típico ou padrão que a sociedade espera desse grupo, e que está associado à imagem que essa categoria profissional tem frente ao senso comum e o fascínio que ela provoca mediante o exercício do poder que lhe é inerente por representar a força do Estado.
Esse comportamento, que equivaleria à concretização do escudo ético, resulta para o policial como uma compensação psicológica, tendo em vista que se trata de um comportamento aceito moralmente pela sociedade apenas para aquele papel social ali desempenhado. Resulta também em outras compensações como, por exemplo, a melhoria da imagem social pelo notável poder de sedução exercido pela demonstração de poder (MELLO, 2011).
Não poderíamos deixar de mencionar os casos em que é possível equiparar os policiais aos cangaceiros transtípicos descritos por Mello, que no caso destes, eram homens que entravam para o cangaço com uma justificativa pessoal e até nobre para a realidade da época e do lugar, por exemplo, a vingança, “comportamento bem aceito pela moral sertaneja” (MELLO, 2001, p. 130), mas que mudavam seus objetivos e viravam cangaceiros profissionais. Na perspectiva do trabalho policial, podemos observar a semelhança à medida que identificamos os casos de policiais que entram para a corporação com fins nobres, como vontade de ajudar o próximo ou para seguir a profissão do pai/avô etc., mas que se transformam ao assumir tal papel social, distanciando-se dos valores éticos e morais, bem como de sentimentos tais quais remorso e vergonha.
Sobre isso, disse Mello:
A conversão daquele homem que entrava no cangaço com o propósito de realizar uma vingança, em cangaceiro profissional, por significar uma reorientação de vida tendente ao afastamento da ética, exigiria todo um processo de diluição de valores, através do amortecimento da consciência moral (2011, p. 131).
Então, não raras vezes, o agir policial é guiado pela imagem do “ser” policialesco que foi criada ao longo do tempo e permanece viva até hoje no cotidiano da sociedade graças ao interesse do Estado que, independente de ideologia ou partidarismo do chefe do Poder Executivo seja ele Federal ou Estadual, beneficia-se com a manutenção desse modelo, pois é ele que vem garantindo a sustentação das estruturas de poder e, em contrapartida, fazem com que haja a perpetuação dessa memória institucional, a qual é apresentada ao policial como base da conduta profissional, mas que se fundamenta em comportamentos incondizentes com o sentido da polícia em um Estado Democrático de Direito e que, inclusive, podem nunca terem sido praticados pela instituição.
Com relação à essa espécie de padrão de comportamento, reforça Soares:
O formato de uma organização é sempre fator significativo na instauração de padrões comportamentais de seus membros, em maior ou menor grau, conforme o caso, ainda mais quando se trata de instituições em que a discricionariedade e arbítrio distinguem-se por critérios complexos e dinâmicos e limites instáveis (2019, p. 42).
Neste diapasão, a sociedade, que também faz parte dessa memória institucional, exige por parte dos agentes de segurança pública comportamentos que ela própria descorda e rechaça, que, de maneira geral, seus indivíduos não seriam capazes de executar, mas, que, por outro lado, acreditam ser comportamentos inerentes ao trabalho policial. Sendo assim, se o sujeito assume o papel social de policial, sob a justificativa psicológica do escudo ético, passa a executá-lo, utilizando-se da carência cultural e da facilidade que nossa sociedade tem em aceitar símbolos desse gênero.
Esclarece Mello:
Construído sob imperativo da consciência moral, o escudo ético destinava-se a preservar ambas as imagens, estabelecendo uma causalidade ética que, sendo embora simples produto de elaboração mental, lograva o efeito por assim dizer mágico de convencer a seu próprio construtor, aplacando-lhe os reproches da consciência, além de lhe fornecer excelente justificativa no plano social. Essencialmente, trata-se de artifício mental orientado no sentido de dar vida, presença e atualidade a causas inexistentes ou que perderam seu valor, com o fim de encobrir moralmente a permanência de efeitos. Tais causas podem ter tido existência real durante algum tempo, como podem não ter existido nunca… (2011, p. 133).
Essa imagem simbólica que a sociedade cria em torno do homem, mitificando-o muitas vezes, como aconteceu com os cangaceiros e continua acontecendo com os policiais, além de embrutecer o indivíduo, prejudica sua saúde mental e põe em risco sua vida, tendo em vista que o desumaniza, cerceando-lhe as fragilidades lhes são inerentes, como medo, insegurança e impotência. Tudo isso, em prol de um projeto excludente que vê o profissional de segurança como um número a serviço do Estado, reproduzindo um modelo arcaico de polícia em que a vida do policial em pleno século XXI assemelha-se a vida do policial Javert, descrito no romance de Victor Hugo, “Os Miseráveis”, em 1862:
Uma vida de privações, isolamento, abnegação, castidade; jamais distração. Era o dever implacável, a polícia compreendida como os espartanos compreendiam Esparta, uma sentinela impiedosa, uma honestidade feroz, um espião de mármore, Brutus encarnado em Vidocq (HUGO, 2014, p. 213).
Portanto, essa figura estereotipada que representa o policial no Brasil, além de não condizer com a realidade, contraria o sentido da polícia em um regime que deve ser pautado pelos direitos humanos.
c – A obediência e o perigo da cultura militarizada na polícia brasileira
Diante da realidade que apresentamos acerca da polícia brasileira, entendemos ser necessário e urgente direcionarmos o olhar para dentro das instituições de segurança pública; e isso significa, em especial, analisar o modelo de polícia adotado no Brasil e repensá-lo, pois, como vimos no decorrer dessa pesquisa, o modelo atual não tem correspondido com o sentido da polícia em um Estado Democrático de Direito. Como ressalta Casara: “Com a desculpa de punir os “bandidos” que violaram a lei, os “mocinhos” também violam a lei, o que faz com que percam a superioridade ética que deveria distinguir os atos estatais” (2017, p. 167).
Nesta conjuntura, além de termos uma polícia explicitamente militar, cuja previsão constitucional é ser força auxiliar do Exército, estrutura única dentre os países democráticos, a própria polícia civil, seja ela estadual ou federal, é forjada sobre bases de organização militarizada, cuja mentalidade muda pouco com relação à Polícia Militar, resultado da ausência de um processo de transição adequado do regime ditatorial militar para democracia, como relata Soares:
Não houve o momento de verdade, que deveria preceder qualquer reconciliação – pensemos em termos correspondentes ao modelo aplicado por Nelson Mandela, na África do Sul. A sociedade não olhou o horror com os olhos, não chamou os crimes da ditadura pelo nome, acomodou-se na pusilanimidade dos eufemismos. O impacto negativo sobre as corporações policiais, sobretudo militares, é inegável. Os novos marcos constitucionais foram e são interpretados, nas polícias (militares e civis), pelo viés da tradição autoritária, gerando, na melhor das hipóteses, um híbrido psicocultural que faz com que muitos profissionais tendam a oscilar entre dois eixos gravitacionais, do ponto de vista axiológico: de um lado, o repertório bélico que valoriza o heroísmo, a lealdade, a coragem física, o confronto; de outro, o código do serviço público que valoriza os direitos e o respeito à cidadania, assim como a fidelidade à Constituição e a competência na promoção de resultados compatíveis com a democracia (SOARES, 2019, p. 45-46).
No modelo de segurança pública que permanece no Brasil, podemos identificar que os elementos obediência e disciplina são alicerces da estrutura policial, que organizadas de maneira hierárquica findam por distorcer seus sentidos, utilizando-os de forma muitas vezes abusiva, chegando a cercear ou violar direitos dos próprios policiais.
No que diz respeito à obediência, embora tenha sido algo apreendido com muita veemência pelos militares, parece ser um elemento natural e, por vezes, necessário à estrutura social, conforme nos preceitua Milgram:
A obediência é um elemento tão básico, na estrutura da vida social como qualquer outro. Parte do sistema de autoridade é uma necessidade de toda vida comunitária e somente a pessoa que habita em isolamento não é forçada a responder, com desafio ou submissão, às ordens de outros. Para muitos, a obediência é uma tendência comportamental profundamente arraigada, chegando mesmo a ser um forte impulso que sobrepuja o treinamento em ética, solidariedade e conduta moral (1974, p. 01).
O dilema estudado por Milgram referente à obediência à autoridade parece ser tão antigo quanto às relações sociais e, ao que nos indica, essa submissão, em certas ocasiões, aparenta estar além de uma característica humana. Por vezes, chega a se mostrar como algo sagrado. Ao observarmos a cultura judaico-cristã, em vários momentos Deus põe à prova a fé de seus súditos através da obediência.
Na história de Abraão, por exemplo, Deus testa sua obediência ordenando-o que sacrifique seu próprio filho, Isaque, como demonstração de subserviência:
E aconteceu, depois destas coisas, que tentou Deus a Abraão e disse-lhe: Abraão! E ele disse: Eis-me aqui. E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi. Então, se levantou Abraão pela manhã, de madrugada, e albardou o seu jumento, e tomou consigo dois de seus moços e Isaque, seu filho; e fendeu lenha para o holocausto, e levantou-se, e foi ao lugar que Deus lhe dissera. Ao terceiro dia, levantou Abraão os seus olhos e viu o lugar de longe. E disse Abraão a seus moços: Ficai-vos aqui com o jumento, e eu e o moço iremos até ali; e, havendo adorado, tornaremos a vós. E tomou Abraão a lenha do holocausto e pô-la sobre Isaque, seu filho; e ele tomou o fogo e o cutelo na sua mão. E foram ambos juntos. Então, falou Isaque a Abraão, seu pai, e disse: Meu pai! E ele disse: Eis-me aqui, meu filho! E ele disse: Eis aqui o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto? E disse Abraão: Deus proverá para si o cordeiro para o holocausto, meu filho. Assim, caminharam ambos juntos (GENESIS, 22:1-8).
Não estaria Deus acima dessa pequenez humana de sentir-se poderoso ao subjugar o outro? Parece que não! São diversas as passagens da bíblia cristã nas quais são relatadas demonstrações do poder de Deus sobre seus servos, impondo-lhes obediência.
Vejamos, Deus não só cobra obediência como pune severamente os desobedientes. De acordo com a teoria criacionista cristã, o primeiro casal que habitou a Terra foi Adão e Eva, os quais foram duramente castigados por desobedecerem às ordens de Deus, dando origem ao que cristãos chamam de “pecado original”, cuja consequência foi a maldição de toda descendência de Adão.
À mulher, ele declarou: “Multiplicarei grandemente o seu sofrimento na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos. Seu desejo será para o seu marido, e ele a dominará”.
E ao homem declarou: “Visto que você deu ouvidos à sua mulher e comeu do fruto da árvore da qual eu lhe ordenara que não comesse, maldita é a terra por sua causa; com sofrimento você se alimentará dela todos os dias da sua vida.
Ela lhe dará espinhos e ervas daninhas, e você terá que alimentar-se das plantas do campo.
Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é pó e ao pó voltará” (GENESIS 3: 16-19).
Se analisarmos sob essa perspectiva, parece-nos que a rigidez militar, no tocante à obediência, tem raízes profundas advindas da origem da humanidade, principalmente se partirmos da premissa de que Deus fez o homem sua imagem e semelhança. Assim, não estaria o homem apenas imitando Deus?
O fato é que, historicamente, são vastos os relatos que descrevem comportamentos militares que mostram o rigor com que são tratados os desobedientes. Sun Tzu, ainda Século 6 a.C., quando escreveu “A arte da guerra”, obra que é considerada um verdadeiro manual de guerra, é muito claro ao discorrer a respeito do tratamento dado aos que desobedecem às regras:
Vocês estão sob meu comando e sob minhas ordens. Devem me escutar atentamente e me obedecer em tudo o que ordenar. Essa e? a regra militar fundamental. Evitem infringi-Ia. (…) Por que não obedeceram? Vocês merecem punição, e punição militar. No universo militar, aquele que não obedece às ordens do general merece a morte. Vocês morrerão (SUN TZU, 2011, p. 8-10).
No entanto, observamos que a rigidez das punições aplicadas aos desobedientes pouco mudou ao longo da história. Com efeito, nos dias atuais, os soldados que não cumprem as ordens não são mais condenados à morte, pois de maneira geral o suplicio corporal foi substituído pela privação de liberdade a partir do século XVIII, mas, no Brasil, é comum que o soldado desobediente tenha sua liberdade cerceada como penalidade sob o aparato legal do instituto da prisão administrativa. Ou seja, até hoje, os militares “desobedientes” sofrem punições severas por descumprirem ordens emanadas por superiores hierárquicos, conforme prevê o artigo 163 do Código Penal Militar Brasileiro: “Recusar obedecer a ordem do superior sobre assunto ou matéria de serviço, ou relativamente a dever imposto em lei, regulamento ou instrução: Pena – detenção, de um a dois anos, se o fato não constitui crime mais grave.”
Por outro lado, assim como Eichman que alegou estrito cumprimento de ordem superior, os militares, segundo o Código Penal Militar Brasileiro, têm o benefício da excludente de culpabilidade em casos de crimes cometidos em estrita obediência a ordem direta de superior hierárquico, em matéria de serviço (Art. 38, b), tendo em vista que “a hierarquia e a disciplina são as bases da organização da Polícia Militar” (Art. 1º, do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar).
De acordo com Arendt, a obediência foi o motivo pelo qual o advogado de Eichmann quando inquirido em Nuremberg, declarou que: “Eichmann se considera culpado perante Deus, não perante a lei” (1999, p. 32).
Arendt explica que:
A defesa aparentemente teria preferido que ele se declarasse inocente com base no fato de que, para o sistema legal nazista então existente, não fizera nada errado; de que aquelas acusações não constituíam crimes, mas “atos de Estado”, sobre os quais nenhum outro Estado tinha jurisdição, de que era seu dever obedecer (1999, p.32-33).
Assim, Eichmann declarou que nunca matou sequer um judeu, nem não-judeu, nunca teria matado nenhum ser humano, mas também deixou bem claro que mataria seu próprio pai se houvesse recebido tal ordem (ARENDT, 1999).
Neste sentido, esclarece Milgram:
A essência da obediência é que uma pessoa passa a se ver como o instrumento que executa os desejos de outra e que, portanto, deixa de se considerar responsável pelas suas ações. Uma vez que ocorre essa mudança crítica de ponto de vista, seguem-se todos os fatores essenciais da obediência. A consequência mais distante é que a pessoa se sente responsável perante a autoridade que a dirige, mas não sente nenhuma responsabilidade pelo conteúdo das ações prescritas pela autoridade. A moralidade não desaparece – adquire um enfoque radicalmente diferente: a pessoa subordinada sente vergonha ou orgulho, dependendo de quão adequadamente executou as ações solicitadas pela autoridade (1974, p. 07).
O julgamento de Eichmann foi um marco histórico na discussão a respeito da relação entre o mal e o comportamento humano e, como já discorremos, Arendt suscitou muita polêmica ao expor seu ponto de vista, por exemplo, quando ela disse que: “Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei” (1999, p. 152). Isso a tornou, segundo Milgran “objeto de considerável desprezo e ate? mesmo de calúnia. De alguma forma, achava-se que os feitos monstruosos levados a cabo por Eichmann necessitavam de uma personalidade brutal e retorcida que encarnasse o mal” (1974, p. 06), mas o fato é que a análise da relação entre autoridade e obediência não pode ser feita sem considerar sua complexidade, sob pena de sermos simplistas.
Como descreveu Milgram:
Até mesmo Eichmann ficava enjoado quando percorria os campos de extermínio, mas, na maioria das vezes, ele tinha apenas de se sentar numa mesa e escrever ordens. O homem que no campo realmente jogava Cyclon-B dentro das câmaras de gás podia justificar o seu comportamento alegando que estava apenas cumprindo ordens superiores. Há, assim, uma fragmentação da ação humana total; ninguém é confrontado com as consequências da sua decisão de executar o ato mau. A pessoa que assume a responsabilidade desapareceu. Talvez seja essa a característica mais comum do mal socialmente organizado na sociedade moderna (1974, p. 11).
Inquietado com essa dinâmica estabelecida entre obediência e autoridade, Milgram realizou um experimento na Universidade de Yale, cujo objetivo era testar até que ponto uma pessoa comum seria capaz de infligir dor a outra pessoa apenas em obediência à ordem de um suposto superior hierárquico, e concluiu:
Essa é, talvez, a lição mais fundamental do nosso estudo: as pessoas comuns que simplesmente cumprem suas tarefas, sem terem qualquer hostilidade particular, podem tornar-se agentes num terrível processo destrutivo. Além disso, mesmo quando os efeitos destrutivos do seu trabalho ficam patentemente claros e que lhes é solicitado cumprir ações incompatíveis com os padrões fundamentais da moralidade, um número relativamente pequeno de pessoas tem os necessários recursos internos para resistir á autoridade (1974, p. 06).
Pois bem, vamos entender em que consistiu e como funcionou o experimento de acordo com o que explicou o próprio cientista:
Duas pessoas eram colocadas em um laboratório psicológico para participarem de um suposto teste de memória. Um exerceria o papel do “professor”, para isso foram selecionados homens entre 20 e 50 anos, que se apresentaram espontaneamente em resposta a um anúncio colocado no jornal. Esse voluntário, conforme Milgram, “e? um paciente realmente ingênuo que veio ao laboratório para essa experiência, em resposta a um anúncio colocado num jornal da localidade solicitando voluntários para um estudo científico da memória” (1974, p. 02) e cujas profissões reais variavam desde não qualificados a profissionais especializados. O outro seria o “aluno”, que na realidade é um ator que conhece as regras e simulará o recebimento do choque elétrico, mas que na verdade não receberá choque algum. O terceiro integrante da simulação é justamente o “experimentador”, pessoa responsável por explicar do que se trata o estudo e supervisioná-lo. Então, o “experimentador” explica aos dois que o estudo versa sobre os efeitos da punição no aprendizado e o aluno é levado a uma sala, colocado sentado em uma espécie de cadeira elétrica, onde seus braços são presos, com o objetivo de evitar movimentos bruscos, e um eletrodo é instalado em seu pulso. Logo em seguida, ao aluno é explicado que lhe será apresentado listas pares de palavras simples e que a partir dali lhe será testada a capacidade de lembrar da segunda palavra quando lhe for lida a primeira. Porém, a ele será alertado que a cada erro receberá um choque que aumentará de intensidade conforme a sucessão de equívocos.
No entanto, o verdadeiro objetivo do experimento é testar o “professor”, e “ver ate? que ponto uma pessoa prosseguira? numa situação concreta e mensurável em que lhe é ordenado infligir uma dor crescente numa vítima que protesta” (MILGRAM, 1974, p. 02). Assim, após receber as instruções e ver o aluno ser amarrado na cadeira, o “professor” é conduzido a uma cadeira e lhe é apresentado um painel de instrumentos composto por trinta interruptores que supostamente controla um gerador de choques. Cada interruptor está identificado com a tensão que será liberada, numa escala de 15 a 450V, além de alertas verbais a respeito da intensidade do choque deferido: “choque Leve a choque Moderado, choque forte, choque muito forte, choque Intenso, choque de extrema Intensidade e, finalmente, perigo: choque grave” (Op. Cit.).
Iniciada a experiência, é aplicado no “professor” uma espécie de “choque de amostra” de 45V antes que ele assuma a posição de “professor” efetivamente. Esse choque serve também como medida fortalecimento da autenticidade do evento e do equipamento.
Pois bem, o teste é iniciado e a controvérsia surge quando o “aluno”, ou seja, a pessoa que receberia o choque, começa a reclamar que está se sentindo mal:
Aos 75 volts, ele geme; aos 120 volts, reclama em voz alta; aos 150, pede para ser liberado da experiência. À medida que aumenta a voltagem, os seus protestos se tornam mais veementes e emocionais. Aos 285 volts, a sua reação pode ser descrita somente como um grito agonizante. Logo em seguida, ele não faz mais nenhum ruído (MILGRAM, 1974, p. 2-3).
A situação começa a ficar tensa e o “professor” começa a ser pressionado pelo “experimentador”, que é a autoridade no local, a continuar. O conflito aumenta com a demonstração de sofrimento do “aluno”, que provoca no “professor” o ânimo de parar, num processo de hesitação crescente, mas que é barrado pelas ordens do “experimentador” que o pressiona a continuar. Para vencer esse dilema, a pessoa teria que enfrentar a autoridade e desobedecer, mas, conforme mostra a pesquisa, as chances de isso acontecer são raras.
Milgram relatou que, antes de realizar o experimento, procurou ouvir a opinião de diversas pessoas de áreas variadas de atuação, inclusive psiquiatras, e as opiniões foram impressionantemente semelhantes no sentido de que as pessoas testadas não obedeceriam ao pesquisador e, em especial, os psiquiatras:
predisseram que a maioria deles não iria além dos 150 volts, quando a vítima faz sua primeira solicitação explícita para ser libertada. Esperavam que somente 4 por cento alcançariam os 300 volts e que somente uma cifra patológica de um em mil administraria o mais intenso choque do quadro (1974, p. 04).
No entanto, as previsões se mostraram equivocadas, pois dos 40 indivíduos testados durante o primeiro experimento, 25 obedeceram às ordens do “experimentador” até o fim, ou seja, 62,5% dos “professores” aplicaram os 450V máximos nos supostos “alunos”. A experiência foi questionada com relação ao público testado, então o professor expandiu a pesquisa que deixou de ser um estudo-piloto e passou a ser uma experiência regular sendo aplicada em diversos países como Alemanha, Itália, África do Sul e Austrália, e o nível da obediência manteve-se constante e até um pouco superior ao realizado na pesquisa inicial em Yale. Com exceção de Munique que surpreendeu o pesquisador apresentando um nível de obediência de 85% entre os indivíduos testados.
– Experimenter: a autoridade responsável por explicar o estudo, supervisionar as ações e pressionar o participante a continuar;
– Subject: o sujeito que aceitou participar do experimento como professor;
– Learner: participante (aluno) que supostamente recebe o choque.
Milgram chama atenção para o fato de que o número de homens testados que conseguiu romper com a autoridade e se recusar a continuar participando da experiência foi muito pequeno.
Milgram explica que:
As implicações do nosso estudo se aplicam igualmente a situações menos extremas. Assim, o conflito entre consciência e autoridade demonstra ser somente num grau limitado – um problema filosófico ou moral. Muitos dos que se submeteram à experiência sentiram, pelo menos no nível filosófico dos valores, que não deveriam continuar, mas estavam incapacitados de transformar essa convicção em ação. Não é necessário uma pessoa má para servir a um mau sistema. As pessoas comuns integram-se facilmente em sistemas malévolos (MILGRAM, 1974, p.11).
Assim como Eichmann, que demonstrou a todos em seu julgamento apenas cumprir ordens, as pessoas de maneira geral, parecem não conseguir reagir à autoridade, sentem-se, talvez, incapazes ou impotentes, mesmo sentindo-se mal e agindo de maneira contrária a seus próprios princípios.
d – Palavras finais
Diante de tudo que abordamos até aqui, no que diz respeito à obediência e sua relação com a autoridade, fazer uma alusão à realidade dos policiais brasileiros e sua estrutura militarizada, não se torna um exercício difícil. Com efeito, temos homens inseridos em um contexto de guerra permanente, onde os direitos são relativizados cotidianamente, vivendo sob pressão diária, mergulhados em memórias institucionais arcaicas e não democráticas de obediência e punição, e submetidos a uma disposição hierárquica opressora e violenta que, parece-nos refletir, em consequência lógica, diretamente no agir policial dentro da sociedade, distanciando-se dos princípios que regem o sentido da polícia em um Estado Democrático de Direito.
Como reforça Milgram:
Uma interpretação teórica deste comportamento afirma que todas as pessoas possuem instintos profundamente agressivos que exercem continuamente pressão para se manifestarem e que a experiência justifica a liberação desses impulsos. De acordo com esse ponto de vista, se uma pessoa é colocada numa situação em que tiver completo poder sobre outro individuo, a quem poderá punir tanto quanto quiser, tudo o que existe de sádico e bestial no homem vêm à tona. O impulso de aplicar choques na vítima é encarado como fluindo das fortes tendências agressivas que fazem parte da vida motivadora do indivíduo e a experiência, pelo fato de dar-lhes legitimidade social, simplesmente abre as portas a? sua manifestação (1974, p. 05).
Por fim, embora Milgram tenha dito que “os aspectos legais e filosóficos da obediência têm enormes consequências, mas esclarecem muito pouco sobre a maneira pela qual a maioria das pessoas se comporta em situações concretas” (1974, p. 01), as evidencias indicam que temos uma “bomba-relógio” chamada polícia nas mãos da nossa sociedade, e que precisa ser “desarmada”.
O desafio, então é repensar um modelo de polícia humanizado que corresponda ao regime democrático de direito, onde os profissionais não estejam submetidos à obediência cega, ou então, continuaremos com indicadores de Segurança Pública alarmantes que refletem esse distanciamento da polícia de seu sentido na democracia.
REFERÊNCIAS
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CASARA, R. R. R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
HUGO, Victor. Os miseráveis. Tradução de Regina Célia de Oliveira. Edição Especial. São Paulo: Martin Claret, 2014.
JOUVENEL, Bertrand de. O poder: história de seu crescimento. Tradução de Paulo Neves. 1. ed. São Paulo: Peixoto Neto, 2010.
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5. ed. São Paulo: A Girafa, 2011.
MILGRAM, Stanley. Behavioral Study of Obedience. Journal of Abnormal and Social Psychology, 67, 371-378. Tradução do Consulado dos Estados Unidos no Rio de Janeiro – Revista Diálogo. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/832874/mod_resource/content/1/Os%20perigos%20da%20ºbediencia.pdf. Acesso em 10/03/2020.
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SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019.
TZU, Sun. A arte da guerra: os treze capítulos originais. Adaptação e tradução de André da Silva Bueno. São Paulo: Jardim dos Livros, 2011.
ZIMBARDO, Philip. Efeito Lúcifer. Tradução de Tiago Novaes. Rio de Janeiro: Editora Record, 2012.
NOTA:
(1) Papel social é um conceito da Sociologia que indica a função do indivíduo na sociedade. Salientando que o mesmo indivíduo pode assumir diversos papeis sociais, ou seja, quando está no ambiente de trabalho, em família ou na igreja, o indivíduo assume uma função específica.