Sacha Calmon Navarro Coelho – Jurista. Advogado. Doutor em Direito Público pela UFMG. Professor Titular de Direito Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da UFRJ.
Tinha a União plena consciência da inconstitucionalidade da cobrança de PIS/Cofins sobre o valor correspondente ao ICMS, pelo menos, desde outubro de 2014
Está pautado para o próximo dia 29 de abril, uma quinta-feira, o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, dos embargos de declaração da União Federal em face do acórdão que, em março de 2017, decidiu pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins. A relatoria é da Exma. Sra. Ministra Cármen Lúcia, ilustre representante mineira na cúpula do Judiciário nacional.
Processo submetido ao rito da repercussão geral (Tema nº 69/RG), o efeito da decisão de mérito extrapola os limites subjetivos da causa, consubstanciando, o posicionamento judicial definitivo sobre a quaestio iuris. O teor da decisão, para além de vincular as partes litigantes naquele processo (RE nº 574.706/PR), influenciará a solução de todos os casos em curso que discutam a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins.
Neste julgamento, se espera da Suprema Corte a integral e incondicional rejeição dos declaratórios fazendários, assegurando a autoridade do precedente firmado em março de 2017, fortemente amparado por manifestações pretéritas de seu próprio Pleno.
Em outras palavras: a conclusão juridicamente correta ao presente caso exige, por um lado, o indeferimento, em qualquer extensão, do pedido de modulação de efeitos da decisão já proferida; e, por outro, a confirmação de que o valor do ICMS a ser excluído da base de cálculo do PIS/Cofins é exatamente o incidente em cada uma das operações tributadas praticadas pelos contribuintes – ou seja, justamente aquele que vem destacado nas respectivas notas fiscais.
Essas, em verdade, são as duas grandes controvérsias que foram construídas pela União Federal em seus declaratórios e que, por fim, precisarão ser definitivamente dirimidas pela Suprema Corte, a quem cabe a última palavra a respeito. Ao fazê-lo, temos plena convicção de que o Tribunal máximo não se distanciará dos caminhos tracejados linhas acima, ante sua reconhecida capacidade técnica na preservação dos ditames constitucionais e, portanto, da própria efetividade do direito.
É fato que a União ainda tenta reverter o mérito da decisão, alegando supostas omissão, contradição e obscuridade, além de erro material incorridos pelo acórdão proferido em 2017, de modo a forçar impróprios efeitos infringentes a seus embargos de declaração.
Afinal, para além de não caber rediscussão de mérito em sede de embargos de declaração, a matéria restou exaurida quando do julgamento do próprio recurso extraordinário (o minucioso acórdão ultrapassa 200 laudas, com manifestação expressa de praticamente todos os ministros e ministras). Além disso, em tal julgado, coube ao STF apenas reafirmar posicionamento que já havia adotado, em preservação da estabilidade de sua jurisprudência (é ver o RE nº 240.785/MG, Relator o eminente Ministro Marco Aurélio, julgado em outubro de 2014).
Tal constatação, per se, escancara a impropriedade de se cogitar de modulação de efeitos da decisão do STF, em favor das burras estatais. Ora, tinha a União Federal plena consciência da inconstitucionalidade da cobrança de PIS/Cofins sobre o valor correspondente ao ICMS, pelo menos, desde outubro de 2014. Antes disso, desde 2007, cuidou de contingenciar o risco fiscal de eventual derrota, como se verifica nas Leis de Diretrizes Orçamentárias de 2007 e 2008.
Percebe-se, em verdade, que mesmo a manifestação plenária da mais alta Corte de nosso país não foi motivo suficiente para que a União revisse seus procedimentos e se abstivesse da exigência fiscal. Nesses termos, a mera pretensão de modulação de efeitos em seu favor representa afronta ao secular princípio jurídico pelo qual ninguém pode alegar para si a própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans). A conduta da União deve se pautar por determinação constitucional (art. 37), pelo princípio da moralidade administrativa. Sem esse, não há confiança. Sem confiança não há direito. Sem direito não há nação.
Assim, no plano extrajurídico é estúpido o impreciso argumento do suposto rombo no orçamento federal, a justificar a modulação por interesse social, em detrimento da preservação da juridicidade e da obediência à lei.
Nos tumultuados tempos em que vivemos, quando a legitimidade dos poderes vem sendo diariamente questionada e posta à prova, essa é uma oportunidade ímpar para reafirmar o papel do STF como guardião da Constituição e, por isso, esteio da sociedade.
Ao rejeitar os declaratórios fazendários, estará a Suprema Corte reafirmando a imperatividade de suas decisões. E muito mais do que isso, restabelecendo a institucionalidade ferida pelo pleito de amesquinhamento do já decidido, e demonstrando o que significa viver em um Estado Democrático de Direito.