Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.
A atuação de um representante do Ministério Público da Bahia deu causa à nulidade de uma sessão do Tribunal do Júri, quando, por unanimidade, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia deu provimento a uma apelação da defesa, na qual se alegou ter havido “cerceamento de defesa pelas repetidas e infundadas interferências do promotor de justiça, mormente devido ao tom de menosprezo e deboche em suas palavras”, especialmente durante os apartes do promotor de Justiça quando o advogado do réu citava casos de inocentes condenados pelo Júri, para destacar a responsabilidade dos jurados. Segundo o apelante, o representante do Ministério Público valeu-se de um “claro discurso de autoridade para incutir nos jurados o entendimento de que um inocente não permaneceria em silêncio, objetivando induzi-los a uma decisão condenatória.”
Segundo consta do acórdão (adotado pelos demais desembargadores), “o representante do Ministério Público extrapolou limites legais ao criticar o silêncio do réu no plenário e causou prejuízo à plenitude de defesa por apartes repetidos e infundados.” De acordo com a relatora, Desembargadora Inez Maria Brito Santos Miranda, o promotor de Justiça “extrapolou os limites legais ao proceder digressão opinativa e crítica, direta e indiretamente, sobre o uso do direito ao silêncio”. Para ela, agir com “escárnio e pilhéria em relação à argumentação de advogados, com o objetivo de desqualificá-la perante os jurados, configura dano insanável à essencial plenitude de defesa”, observando que a defesa recorreu em favor de um dos réus, mas o teor da sua apelação também se aplicava ao outro acusado, de modo que o júri deveria ser anulado para ambos.
A sessão desse julgamento ocorreu no Fórum de Guanambi, cidade a 676 quilômetros de Salvador, em 13 de abril de 2018. Segundo consta da acusação, por causa de dívida do tráfico de drogas, A.M.P.L. e C.G.S. mataram G.S.N. com três tiros nas costas em 31 de outubro de 2013. Os réus também foram acusados de extorsão e ocultação de cadáver por terem constrangido um homem a lhes entregar um carrinho de mão para levar o corpo até um terreno baldio. Os jurados absolveram os réus da extorsão e ocultação de cadáver, mas os condenaram pelo homicídio qualificado por motivo torpe e emprego de recurso que impossibilitou a defesa da vítima. As suas penas foram fixadas em 14 anos e 12 anos e seis meses de reclusão, em regime fechado, com o direito de recorrer em liberdade.
Note-se que o próprio parecer do Ministério Público em segundo grau (de minha autoria) foi favorável ao provimento da apelação, pois, conforme afirmado no pronunciamento ministerial, a mídia digital acostada aos autos demonstrou claramente que o representante do Ministério Público violou o art. 478, caput e II, do Código de Processo Penal.
Para ilustrar o parecer, transcreveu-se as palavras do Promotor de Justiça, nestes termos: “Eu sei que o réu durante o interrogatório, o que eu acho um erro, o erro do Brasil, coisas do Brasil, né? O réu durante o interrogatório não é obrigado a responder as perguntas sobre o fato. Ele não é obrigado, responde se quiser. É por isso que normalmente eu não pergunto nada sobre o fato, porque como nós vimos hoje, a defesa pergunta tudo e o réu responde até o que não deve de um processo que não tem nada a ver. Que não está nos autos.”
Vê-se, portanto, que o Ministério Público fez referência ao silêncio do acusado, nada obstante a proibição expressa do art.478, caput e inciso II, do Código de Processo Penal, o que pode ter influenciado na decisão dos jurados. A propósito, convém salientar a lição de Eugênio Pacelli e Douglas Fischer:
“O direito ao silêncio, portanto, é uma das manifestações mais importantes do aludido princípio (nemotenetur), na medida em que tutela, não só a consciência moral daquele que, pelo fato de correr o risco de uma condenação, se vê compelido a mentir em seu favor, mas, também, protege o acusado contra juízos de convencimentos lastreados em percepções subjetivas indignas de graus aceitáveis de certeza. De outro bordo, o silêncio é direito constitucional do réu. Se é vedado ao juiz considerar o silêncio em desfavor do réu (parágrafo único do art. 186 do CPP: ‘o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa’), também não poderá ser arguido como fundamento para reforçar a procedência da acusação perante o plenário do Júri. Portanto, o dispositivo em tela – sem similar no CPP anterior – guarda estrita consonância com o art. 5º, LXIII, CF/88.”(1)
Segundo Renato Brasileiro, “o exercício do direito ao silêncio não é sinônimo de confissão ficta ou de falta de defesa, cuida-se de direito do acusado, no exercício da autodefesa, podendo ser usado como estratégia defensiva; no âmbito do júri, pode-se dizer que, ao invés de se valer da prova constante dos autos, as partes tentam formar o convencimento dos jurados apelando para uma anterior decisão do juiz presidente ou do Tribunal acerca do caso concreto. Como os jurados são pessoas leigas, geralmente desprovidas de conhecimento técnico, podem ser facilmente influenciados no sentido da condenação (ou absolvição) do acusado se lhes for revelado o entendimento do juiz togado acerca do caso concreto. Daí a importância de se vedar a utilização do argumento de autoridade. Visando evitar que os jurados sejam convencidos pelas partes senão com base na prova constante dos autos, o art. 478 do CPP dispõe que, durante os debates, as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo.”(2)
Além desse fato grave, observou-se também que as constantes e inoportunas interrupções do representante do Ministério Público durante o julgamento violaram a plenitude de defesa garantida no artigo 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, comprometendo-se o julgamento. Neste sentido, como se comprovou com o conteúdo da mídia digital, durante a sustentação oral da defesa, o representante do Ministério Público interrompeu várias vezes a palavra do advogado, inclusive com risadas, o que pode ter afetado as alegações defensivas.
Como se sabe, a intervenção de uma das partes durante os debates, nos termos do art. 497, XII, do Código de Processo Penal, deve ser regulamentada pelo Juiz Presidente do Tribunal do Júri. Analisando-se os autos, percebeu-se que apenas duas intervenções obedeceram o dispositivo legal referido acima, porquanto por diversas vezes o representante do Ministério Público interrompeu a defesa, sem a anuência da Juíza, questionando e falando com menoscabo, inclusive com risadas, obstando, efetivamente, o exercício da plenitude de defesa, assegurada no art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal.
Aliás, algumas das intervenções ocorreram no momento em que a defesa relatava casos de erros em condenações pelo Tribunal do Júri (exercendo a plenitude de defesa), tentando infundir nos jurados a cautela e a prudência necessárias para um julgamento, o que poderia beneficiar a todos os acusados, restando claro, portanto, que a plenitude de defesa foi prejudicada, pois o comportamento absolutamente inadequado do promotor de Justiça conspurcou todo o julgamento.
Sobre a plenitude de defesa, vejamos, mais uma vez, a doutrina de Renato Brasileiro: “A primeira garantia constitucional do júri é a plenitude de defesa. Enquanto a ampla defesa é assegurada a todos os acusados (CF, art. 5º, LV), inclusive em relação àqueles que são submetidos a julgamento perante o Tribunal do Júri, a plenitude de defesa é prevista especificamente como garantia do Júri (CF, art. 5º, XXXVIII, ‘a’). A plenitude de defesa implica no exercício da defesa em um grau ainda maior do que a ampla defesa da defesa técnica: o advogado não precisa se restringir a uma atuação exclusivamente técnica, ou seja, é perfeitamente possível que o defensor também utilize argumentação extrajurídica, valendo-se de razões de ordem social, emocional, de política criminal, etc. A plenitude da autodefesa: ao acusado é assegurado o direito de apresentar sua tese pessoal por ocasião do interrogatório, a qual também não precisa ser exclusivamente técnica, oportunidade em que poderá relatar aos jurados a versão que entender ser a mais conveniente a seus interesses.”(3)
No mesmo sentido, Gustavo Henrique Badaró afirma que, “embora seja assegurado em todo processo judicial a ‘ampla defesa’ (CR, art. 5º, LV), especificamente no Tribunal do Júri foi prevista a ‘plenitude de defesa’ (CR, art. 5º, XXXVIII, a). Não parece se tratar de mera variação terminológica, com o mesmo conteúdo. Pleno (significa: repleto, completo, absoluto, perfeito) é mais do que amplo (significa: muito grande, vasto, abundante). Assim, a plenitude de defesa exige uma defesa em grau ainda maior do que o da ampla defesa. Já no júri, por se tratar de um tribunal popular, em que os jurados decidem mediante íntima convicção, com base em uma audiência concentrada e oral, a defesa deve ser plena, isto é, ‘uma defesa acima da média’ ou ‘irretocável’.Aceita-se, ainda, que possa inovar na tréplica, mesmo que isto cause surpresa ao acusador e impeça o contraditório.”(4)
Ademais, importante ressaltar que o réu tem direito ao respeito; praticando uma conduta delituosa merece também ser punido (se for o caso), é evidente, mas não lhe retirando garantias processuais e faltando-lhe com a consideração devida. O acusado de um crime tem que ser visto como um sujeito de direitos para o qual a Constituição previu uma série de garantias processuais que devem ser obrigatoriamente obedecidas, principalmente pelo órgão responsável pela acusação pública. Se o promotor de Justiça não tiver essa consciência ética, e considerando as atuais condições que são inteiramente propícias ao endurecimento do tratamento penal dos acusados, é evidente que diversos direitos e garantias processuais (muitos dos quais previstos na Carta Magna), podem ser esquecidos, revelando atitude, do ponto de vista ético, extremamente reprovável.
Por isso que a acusação pública, apesar de ser deduzida em nome da sociedade, não pode ser movida por sentimento de ódio, paixão ou vingança, deixando-se de lado a lógica jurídica e sustentando a acusação apenas na boa oratória e na eloquência vazia de argumentação, amesquinhando-se uma função tão digna. Dessa forma, por exemplo, a aceitação da improcedência de uma acusação, antes de representar uma derrota, deve ser vista como uma atitude nobre e eticamente incensurável.
A ética, portanto, repulsa os espetáculos teatrais, a busca incessante pela notoriedade e pelo espaço na mídia, as humilhações a quem já se encontra em situação vexatória, tudo a exigir do Promotor criminal um distanciamento quase “heroico” das paixões que costumam rodear as causas criminais.
Roberto Lyra, em uma de suas obras, resumiu de forma absolutamente correta os princípios norteadores da conduta de um membro do Ministério Público; citando o Marquês de São Vicente (“tão cioso das convenções hipócritas de outrora”), ele escreveu: “O acusador, por decoro próprio e sobretudo por obrigação estrita, jamais deverá injuriar o réu, ou por qualquer forma olvidar-se do respeito devido ao tribunal. Pelo contrário, refletido e moderado, embora enérgico em sua argumentação, deve produzir a acusação sem arrebatamento, sem exageração.”(5)
Segundo Lyra, “faltará, no entanto, à ética, numa de suas regras essenciais, o Promotor Público que injuriar o réu, ou, mesmo vexá-lo sem estrita necessidade. Mais do que violação da ética isso constitui covardia, na rigorosa expressão da palavra. É, também, impolítico, desastrado, contraproducente esse procedimento pelo péssimo efeito, pelo desprestígio da função, pelo descrédito do orador judiciário.”(6)
Destarte, não deve o Promotor valer-se do infortúnio do acusado para, afagando a sua vaidade, utilizar-se do processo como palco para disputas forenses e em busca da notoriedade gratuita e nociva.
No que diz respeito ao relacionamento com os magistrados, os advogados e os próprios colegas, deve o Promotor de Justiça comportar-se sem qualquer tipo de animosidade, ainda que suas teses jurídicas sejam conflitantes, o que é normal tratando-se de uma ciência como é a do Direito. Não havendo entre eles qualquer tipo de hierarquia ou submissão, é evidente que o convívio deverá ser o mais harmônico, respeitoso e confiável e isto só é possível se todos se conduzirem eticamente nas suas respectivas áreas de atuação, o que não ocorreu no caso dos autos em relação ao promotor de Justiça e à defesa, conforme explicitado acima.
Por fim, observa-se que tais questão não são meramente procedimentais, como se costuma, depreciativamente e de forma simplista, afirmar-se em algumas decisões judiciais que ainda teimam em invocar uma nociva “instrumentalidade do processo” para relativizar o rito processual em detrimento da garantia que ele representa para o acusado no processo penal.
Aliás, Calmon de Passos, há quase duas décadas, já desvelava esta farsa, afirmando que “falar-se em instrumentalidade do processo é incorrer-se, mesmo que inconsciente e involuntariamente, em um equívoco de graves consequências, porque indutor do falso e perigoso entendimento de que é possível dissociar-se o ser do direito do dizer sobre o direito, os do direito do processo de sua produção, o direito material do direito processual”.
Para Calmon, a instrumentalidade foi uma resposta dada “para o problema do sufoco em que vive o Poder Judiciário, dado o inadequado, antidemocrático e burocratizante modelo de sua institucionalização constitucional. A pergunta que cumpria fosse feita- quais as causas reais dessa crise-jamais foi formulada. E a resposta foi dada pela palavra mágica da’ instrumentalidade’, a que se casaram outras palavras mágicas- ‘celeridade’, ‘efetividade’, ‘deformalização’ etc. E assim, de palavra mágica em palavra mágica, ingressamos num processo de produção do direito que corre o risco de se tornar pura prestidigitação. Não nos esqueçamos, entretanto, que todo espetáculo de mágica tem um tempo de duração e a hora do desencantamento”.(7)
Pois que, desgraçadamente, até hoje como nunca antes, despreza-se a forma com argumentos utilitaristas, eficientistas e consequencialistas, como se um procedimento em matéria penal fosse apenas um “simples detalhe”, um arremate, digamos assim, perfeitamente dispensável, esquecendo-se que a sua observância é, sobretudo, uma garantia que o acusado será processado, julgado e (se for o caso) condenado sob o manto do devido processo legal, sem manipulações de qualquer natureza. No Processo Penal, cujo conteúdo difere substancialmente do Processo Civil, o prejuízo decorrente da inobservância das normas deve ser presumido e não provado pela defesa.(8)
Notas:
(1) PACELLI, Eugênio e FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. São Paulo: Atlas: 2020, pp. 526 e 1.149.
(2) BRASILEIRO, Renato. Manual de Processo Penal. Salvador: JusPodivm, 2016, pp. 71/72,75 e 1383.
(3) Obra citada,pp.1.372/1.373.
(4) BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. São Paulo: RT, 2015, pp. 649 e 650.
(5) LYRA, Roberto. Teoria e Prática da Promotoria Pública. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 79.
(6) Obra citada, p. 80.
(7) CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal. Revista de Processo, nº. 102, Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, pp. 55 e seguintes.
(8) A propósito, é preciso ler e reler o clássico “A Lide e o Conteúdo do Processo Penal”, de Jacinto Nelson Miranda Coutinho, Curitiba: Juruá, 1998.