O Bullyng, o Cyberbullyng e a Expansão do Direito Penal

Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

 

Como amplamente divulgado na imprensa e nos sites jurídicos em geral, foi promulgada a Lei nº. 14.811/24, que instituiu medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais ou similares, prevendo-se, outrossim, a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente, alterando-se também o Código Penal, a Lei dos Crimes Hediondos e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Com efeito, pela nova lei, constitui contravenção penal (e não crime, visto que a pena cominada é apenas multa, salvo se a conduta não constituir infração penal mais grave) o fato de “intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais.”

Ademais, pune-se também o cyberbullyng (com pena de reclusão), caso a conduta acima descrita seja “realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real.”

Pois bem.

Não se pretende neste artigo discutir dogmaticamente os novos tipos penais, tais como o bem jurídico tutelado, sujeitos passivo e ativo, tipos objetivo e subjetivo, etc., etc. Deixemos esta tarefa para os penalistas.

Aqui e agora trago à reflexão se, efetivamente, seria necessária a criminalização de mais condutas para resolver uma questão muito mais voltada para outras áreas do conhecimento (como o direito educacional, por exemplo) do que para o direito penal que, como se sabe, deve ser visto como ultima ratio, pois, no mais das vezes, leva o autor do ilícito para a prisão (provisória ou definitiva).

É indiscutível que a prisão em todo o mundo passa por uma crise sem precedentes. A idéia disseminada a partir do século XIX segundo a qual a prisão seria a principal resposta penológica na prevenção e repressão ao crime perdeu fôlego, predominando atualmente “uma atitude pessimista, que já não tem muitas esperanças sobre os resultados que se possa conseguir com a prisão tradicional”, como afirma Cezar Roberto Bitencourt.[1]

É de Hulsman a seguinte afirmação: “Em inúmeros casos, a experiência do processo e do encarceramento produz nos condenados um estigma que pode se tornar profundo. Há estudos científicos, sérios e reiterados, mostrando que as definições legais e a rejeição social por elas produzida podem determinar a percepção do eu como realmente ‘desviante’ e, assim, levar algumas pessoas a viver conforme esta imagem, marginalmente. Nos vemos de novo diante da constatação de que o sistema penal cria o delinqüente, mas, agora, num nível muito mais inquietante e grave: o nível da interiorização pela pessoa atingida do etiquetamento legal e social.”[2]

O próprio sistema carcerário brasileiro revela o quadro social reinante neste País, pois nele estão “guardados” os excluídos de toda ordem, basicamente aqueles indivíduos banidos pelo injusto e selvagem sistema econômico no qual vivemos; o nosso sistema carcerário está repleto de pobres e isto não é, evidentemente, uma “mera coincidência”. Ao contrário: o sistema penal, repressivo por sua própria natureza, atinge tão-somente a classe pobre da sociedade. Sua eficácia se restringe, infelizmente, a ela. As exceções que conhecemos apenas confirmam a regra.

Aliás, a esse respeito, há uma opinião bastante interessante de Maria Lúcia Karam, segundo a qual “hoje, como há duzentos anos, mantém-se pertinente a indagação de por que razão os indivíduos despojados de seus direitos básicos, como ocorre com a maioria da população de nosso país, estariam obrigados a respeitar as leis.”[3]

De forma que esse quadro sócio-econômico existente no Brasil, revelador de inúmeras injustiças sociais, leva a muitos outros questionamentos, como por exemplo: para que serve o nosso sistema penal? A quem são dirigidos os sistemas repressivo e punitivo brasileiros? E o sistema penitenciário é administrado para quem? E, por fim, a prática de um ilícito é, efetivamente, apenas um caso de polícia?

Ao longo dos anos a ineficiência da pena de prisão mostrou-se de tal forma clara que chega a ser difícil qualquer contestação a respeito. Em nosso País, por exemplo, muitas leis penais puramente repressivas estão a todo o momento sendo sancionadas, como as leis de crimes hediondos, a prisão temporária, a criminalização do porte de arma, a lei de combate ao crime organizado, etc, sempre para satisfazer a opinião pública (previamente manipulada pelos meios de comunicação), sem que se atente para a boa técnica legislativa e, o que é pior, para a sua constitucionalidade. E, mais: o encarceramento como base para a repressão.

Assim, por exemplo, ao comentar a lei dos crimes hediondos, Alberto Silva Franco afirma que ela, “na linha dos pressupostos ideológicos e dos valores consagrados pelo Movimento da Lei e da Ordem, deu suporte à idéia de que leis de extrema severidade e penas privativas de alto calibre são suficientes para pôr cobro à criminalidade violenta. Nada mais ilusório.”[4]

Certamente a aplicação da pena de privação da liberdade como solução para a questão de vazamentos de informações em concursos, avaliações e exames públicos é mais um equívoco do nosso péssimo legislador, pois de nada adiantam leis severas, criminalização excessiva de condutas, penas mais duradouras ou mais cruéis.

A nossa realidade carcerária é preocupante; os nossos presídios e as nossas penitenciárias, abarrotados, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê-los; e há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos; ao invés de lugares de ressocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábricas de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados; por outro lado, a volta para a sociedade (através da liberdade), ao invés de solução, muitas das vezes, torna-se mais uma via crucis, pois são homens fisicamente libertos, porém, de tal forma estigmatizados que tornam-se reféns do seu próprio passado.

Hoje, o homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o cárcere encontra diante de si a triste realidade do desemprego, do descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas alternativas que não o acolhimento pelos seus antigos companheiros; este homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao crime, ao cárcere (só não volta se morrer).

É, no dizer de Aury Lopes Jr., a autofagia do sistema penal: “o sistema penal é autofágico. Ele se alimenta de si mesmo.”[5] Como diz Loïc Wacquant: “a gestão penal da insegurança social alimenta-se de seu próprio fracasso programado.”[6]

Bem a propósito é a lição de Antônio Cláudio Mariz de Oliveira: “Ao clamar pelo encarceramento e por nada mais, a sociedade se esquece de que o homem preso voltará ao convívio social, cedo ou tarde. Portanto, prepará-lo para sua reinserção, se não encarado como um dever social e humanitário, deveria ser visto, pelo menos, pela ótica da autopreservação.”[7]

Mathiesen avalia que “se as pessoas realmente soubessem o quão fragilmente a prisão, assim como as outras partes do sistema de controle criminal, as protegem – de fato, se elas soubessem como a prisão somente cria uma sociedade mais perigosa por produzir pessoas mais perigosas -, um clima para o desmantelamento das prisões deveria, necessariamente, começar já. Porque as pessoas, em contraste com as prisões, são racionais nesse assunto. Mas a informação fria e seca não é suficiente; a falha das prisões deveria ser ‘sentida’ em direção a um nível emocional mais profundo e, assim fazer parte de nossa definição cultural sobre a situação.”[8]

Ademais, as condições atuais do cárcere, especialmente na América Latina, fazem com que, a partir da ociosidade em que vivem os detentos, estabeleça-se o que se convencionou chamar de “subcultura carcerária”, um sistema de regras próprias no qual não se respeita a vida, nem a integridade física dos companheiros, valendo intra muros a “lei do mais forte”, insusceptível, inclusive, de intervenção oficial de qualquer ordem.

Já no século XVIII, Beccaria, autor italiano, em obra clássica, já afirmava: “Entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos crimes, é necessário, portanto, escolher os meios que devem provocar no espírito público a impressão mais eficiente e mais perdurável e, igualmente, menos cruel no organismo do culpado.”[9]

Por sua vez, Marat, em obra editada em Paris no ano de 1790, já advertia que “é um erro crer que se detêm o mal pelo rigor dos castigos.”[10]

Esqueceu-se novamente que o modelo clássico de justiça penal vem cedendo espaço para um novo modelo penal, este baseado na idéia da prisão como extrema ratio e que só se justificaria para casos de efetiva gravidade. Em todo o mundo, passa-se gradativamente de uma política paleorrepressiva ou de hard control, de cunho eminentemente simbólico (consubstanciada em uma série de leis incriminadoras, muitas das quais eivadas com vícios de inconstitucionalidade, aumentando desmesurada e desproporcionalmente a duração das penas, inviabilizando direitos e garantias fundamentais do homem, tipificando desnecessariamente novas condutas, etc.) para uma tendência despenalizadora.

Como afirma Jose Luis de la Cuesta, “o direito penal, por intervir de uma maneira legítima, deve respeitar o princípio de humanidade. Esse princípio exige, evidentemente, que se evitem as penas cruéis, desumanas e degradantes (dentre as quais pode–se contar a pena de morte), mas não se satisfaz somente com isso. Obriga, igualmente, na intervenção penal, a conceber penas que, respeitando a pessoa humana, sempre capaz de se modificar, atendam e promovam a sua ressocialização: oferecendo (jamais impondo) ao condenado meios de reeducação e de reinserção.”[11]

Para concluir, e acreditando que o direito penal não deve ser utilizado para incriminar toda e qualquer conduta ilícita (atentando-se para o princípio da intervenção mínima[12]), devendo, diversamente, ser resguardado para situações limites, posicionamo-nos contrariamente à nova criminalização, afastando a incidência do Direito Penal, pois só assim ele (o Direito Penal) terá “um papel bastante modesto e subsidiário de uma política social de largo alcance, mas nem por isso menos importante. Uma boa política social (inclusive ambiental, diríamos nós), ainda é, enfim, a melhor política criminal”, como afirma Paulo de Souza Queiróz.[13] Chega de crimes!

O combate ao bullyng e ao cyberbullyng, práticas odiosas sob todos os aspectos, certamente não passa necessariamente pelo direito penal, muito pelo contrário: sanções administrativas e civis seriam, muitas das vezes, mais eficientemente aplicadas e, por conseguinte, mais eficazes e intimidatórias. Poderíamos, por exemplo, adotar o que Hassemer chama de direito de intervenção (Interventionsrecht), uma mescla entre o tradicional direito penal e o direito administrativo; este novo direito excluiria as sanções tipicamente penais com garantias menores que o direito penal tradicional. Segundo ele, as suas principais características seriam: o seu caráter fundamentalmente preventivo, de imputação de responsabilidades coletivas, sanções rigorosas, com impossibilidade de admitir penas de privação de liberdade, atuação global e não casuística, atuação subsidiária do direito penal, e, por fim, a previsão de “soluções inovadoras, que garantam a obrigação de minimizar os danos.”[14] Seria, portanto, um direito sancionador, sem os princípios e regras do direito penal das pessoas físicas.

Por fim, transcrevemos uma parábola feita por Zaffaroni, em conferência realizada no Brasil, no Guarujá, no dia 16 de setembro de 2001: “O açougueiro era um homem que tinha uma loja de carnes, com facas, facões e todas essas coisas necessárias para o seu comércio. Um certo dia, alguém fez uma brincadeira e pôs vários cartazes de outras empresas na porta do açougue, onde se lia: ´Banco do Brasil`, ´Agência de Viagens`, ´Consultório Médico`, ´Farmácia`. O açougueiro, então, começou a ser visitado por outros fregueses que lhe pediam pacotes turísticos para a Nova Zelândia, queriam depositar dinheiro em uma conta, queixavam-se de dor de estômago, etc. O açougueiro, sensatamente, respondia: ´Não sei, sou um simples açougueiro. Você tem que ir para um outro lugar, consultar outras pessoas`. E os fregueses, então, se enojavam: ´Como é que você está oferecendo um serviço, têm cartazes em sua loja que oferecem algo e depois não presta o serviço oferecido?`. Então, o açougueiro começou a enlouquecer e a pensar que realmente ele era capaz de vender pacotes para a Nova Zelândia, fazer o trabalho de um bancário, resolver problemas de estômago, etc. E, mais tarde, tornando-se ainda mais louco,e começou a fazer todas aquelas coisas que ele não podia e não tinha capacidade para fazer, e os clientes acabavam com buracos no estômago, outros perdendo todas as suas economias, etc. Mas, se os fregueses também ficassem loucos e passassem novamente a procurá-lo e a repetir as mesmas coisas, o açougueiro acabaria realmente convencido que tinha a responsabilidade de resolver tudo.” Concluiu, então, o Mestre portenho e Juiz da Suprema Corte Argentina: “Bem, eu acho que isto aconteceu e continua acontecendo com o penalista. Colocam-nos responsabilidade em tudo.” (Tradução livre).

NOTAS:

[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 1.

[2] HULSMAN, Louk e CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas – O Sistema Penal em Questão, Niterói: Luam, 1997, p. 69

[3] KARAM, Maria Lúcia. De Crimes, Penas e Fantasias, Rio de Janeiro: Luan, 1991, p. 177.

[4] FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 97.

[5] LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2010, p. 17.

[6] WACQUANT. Loïc. As Prisões da Miséria, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 145.

[7] OLIVEIRA, Antônio Claúdio Mariz de. Folha de São Paulo, edição do dia 06 de junho de 2005.

[8] MATHIESEN, Thomas. Conversações Abolicionistas – Uma Crítica do Sistema Penal e da Sociedade Punitiva, São Paulo: IBCCrim, 1997, p. 275.

[9] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas, São Paulo: Hemus, 1983, p. 43.

[10] MARAT, Jean Paul. Plan de Legislación Criminal, Buenos Aires: Hamurabi, 2000, p. 78.

[11] CUESTA, Jose Luis de la. “Pena de morte para os traficantes de drogas?”, publicado no Boletim da Associação Internacional de Direito Penal (Grupo Brasileiro), ano 1, nº. 01 (maio de 2005), p. 04.

[12] Para Luiz Regis Prado, “o princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa.” (Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 81). Sobre o assunto, conferir QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter Subsidiário do Direito Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1998).

[13] QUEIRÓZ. Paulo de Souza. Direito Penal – Parte Geral, 4ª. ed., 2008, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, p. 103.

[14] HASSEMER, Winfried. APreservação do Ambiente através do Direito Penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais 22. A esse respeito conferir SANCHEZ, Jesus-Maria Silva, “Política Criminal Moderna? Consideraciones a partir del ejemplo de los delitos urbanísticos en el nuevo Código penal español”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 23.

 

 

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