O Artigo 24 da EC 103 e a Redução da Renda Previdenciária

Bruno Sá Freire Martins –  Servidor público efetivo do Instituto de Previdência do Estado de Mato Grosso – MTPREV; advogado; consultor jurídico da ANEPREM, da APEPREV, da APPEAL e da ANORPREV; pós-graduado em Direito Público e em Direito Previdenciário; professor de pós-graduação; Coordenador do MBA em Regime Próprio do ICDS – Instituto Connect de Direito Social; membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Prática Previdenciária da Paixão Editores; escreve todas as terças-feiras para a Coluna Previdência do Servidor no Jornal Jurid Digital (ISSN 1980-4288 – www.jornaljurid.com.br/colunas/previdencia-do-servidor) e para o site fococidade.com.br, autor dos livros DIREITO CONSTITUCIONAL PREVIDENCIÁRIO DO SERVIDOR PÚBLICO, A PENSÃO POR MORTE, REGIME PRÓPRIO – IMPACTOS DA MP n.º 664/14 ASPECTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS e MANUAL PRÁTICO DAS APOSENTADORIAS DO SERVIDOR PÚBLICO, todos da editora LTr, do livro A NOVA PREVIDÊNCIA DOS SERVIDORES  PÚBLICOS (editora Alteridade) e de diversos artigos nas áreas de Direito Previdenciário e Direito Administrativo.

 

Resumo: A aplicação das reduções previstas no artigo 24 da Emenda Constitucional n.º 103/19 alcançam os benefícios concedidos antes e depois de sua entrada em vigor e deve ser observada por todos os Regimes Próprios, pelo Regime Geral e pelo Sistema de Proteção Social dos Militares. Contudo em determinados casos pode ensejar a redução dos valores que já vinham sendo recebidos pelos segurados, contrariando, assim, o dever de observância do princípio da irredutibilidade dos proventos e levando à necessidade de que sua interpretação seja feita conforme a Constituição.

Palavras chaves: Redução – Renda Previdenciária – Irredutibilidade – Interpretação Conforme a Constituição.

1 – Introdução:

A Emenda Constitucional n.º 103/19, apesar de delegar aos Entes Federados a definição das regras atinentes a aposentadorias e pensões de seus servidores públicos e respectivos dependentes, trouxe alguns regramentos cuja aplicação é de observância obrigatória por todos os Entes Federados desde a sua entrada em vigor, como é o caso de seu artigo 24.

Previsão essa que faz com que, nos casos onde o direito a ao menos um dos benefícios tenha se materializado após a reforma previdenciária, ocorra a redução prevista no dispositivo e alcança a todos os benefícios que o segurado venha a acumular e que integrem as regras nele estabelecidas.

E cuja aplicação pode levar à redução nominal de valores anteriormente recebidos, o que em tese caracteriza ofensa direta à regra da irredutibilidade de seus valores e que a tornaria inconstitucional ao menos nessas situações.

Discussão que passa a ser, a partir de agora, objeto do presente texto.

2 – As Regras de Acúmulo:

A reforma previdenciária de 2019, como dito, trouxe dois tipos de regras para os Regimes Próprios, algumas consistentes em parâmetros gerais cuja observância deve se dar no momento em que o Ente Federado vier a promover a sua reforma previdenciária.

E outras que se revestem da natureza de normas gerais e que são consideradas como normas constitucionais de eficácia plena, ou seja, aplicam-se desde o advento da reforma a todos os Entes Federados independentemente destes terem promovido reformas previdenciárias locais.

As normas tidas por gerais são aquelas que contém mandamentos cuja observância estende-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, já as normas constitucionais de eficácia plena são aquelas que produzem efeitos desde a sua entrada em vigor, não dependendo, portanto, de regulamentações posteriores para sua efetividade.

As normas constitucionais de eficácia plena, como ensina MORAES[1] são aquelas que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular.

Ao se analisar o conteúdo do artigo 24 da Emenda Constitucional n.º 103/19 constata-se que o mesmo conta com mandamento geral e que não indica a necessidade de regulamentação, pois como se vê de sua redação:

Art. 24. É vedada a acumulação de mais de uma pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro, no âmbito do mesmo regime de previdência social, ressalvadas as pensões do mesmo instituidor decorrentes do exercício de cargos acumuláveis na forma do art. 37 da Constituição Federal.

§ 1º Será admitida, nos termos do § 2º, a acumulação de:

I – pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com pensão por morte concedida por outro regime de previdência social ou com pensões decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal;

II – pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com aposentadoria concedida no âmbito do Regime Geral de Previdência Social ou de regime próprio de previdência social ou com proventos de inatividade decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal; ou

III – pensões decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal com aposentadoria concedida no âmbito do Regime Geral de Previdência Social ou de regime próprio de previdência social.

§ 2º Nas hipóteses das acumulações previstas no § 1º, é assegurada a percepção do valor integral do benefício mais vantajoso e de uma parte de cada um dos demais benefícios, apurada cumulativamente de acordo com as seguintes faixas:

I – 60% (sessenta por cento) do valor que exceder 1 (um) salário-mínimo, até o limite de 2 (dois) salários-mínimos;

II – 40% (quarenta por cento) do valor que exceder 2 (dois) salários-mínimos, até o limite de 3 (três) salários-mínimos;

III – 20% (vinte por cento) do valor que exceder 3 (três) salários-mínimos, até o limite de 4 (quatro) salários-mínimos; e

IV – 10% (dez por cento) do valor que exceder 4 (quatro) salários-mínimos.

§ 3º A aplicação do disposto no § 2º poderá ser revista a qualquer tempo, a pedido do interessado, em razão de alteração de algum dos benefícios.

§ 4º As restrições previstas neste artigo não serão aplicadas se o direito aos benefícios houver sido adquirido antes da data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional.

§ 5º As regras sobre acumulação previstas neste artigo e na legislação vigente na data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional poderão ser alteradas na forma do § 6º do art. 40e do § 15 do art. 201 da Constituição Federal.

Não há nenhuma exigência de edição de norma local para sua aplicação e muito menos a sua limitação apenas e tão somente ao Regime Próprio da União, por isso MARTINS[2] afirma que inicialmente, é preciso frisar que a norma contida no art. 24 não traz qualquer limitação de sua aplicação apenas e tão somente para os servidores federais, o que significa que se está diante de uma regra que alcança os dependentes dos segurados dos Regimes Próprios da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como dos que integram o Regime Geral.

Na mesma esteira NÓBREGA e BENEDITO salientam que vale dizer que as disposições constitucionais sobre essa matéria aplicam-se aos RPPSs da União, dos Estados, do DF e dos Municípios, que não possuem autonomia para dispor de forma diferente, ao contrário das regras de acesso aos benefícios e sua forma de cálculo, das quais os entes podem dispor, mediante adequação de sua legislação interna.[3]

O caput traz regramento específico sobre a questão de cumulação de pensões por morte decorrente de óbitos de cônjuges e/ou companheiros.

Além disso, em linhas gerais evidencia-se que o artigo, também, objetiva delimitar algumas hipóteses de cumulação do benefício de pensão por morte com outra pensão ou mesmo proventos de aposentadoria ou inatividade militar (§ 1º).

Hipóteses essas que, para efeitos do disposto no § 2º, constitui-se em rol taxativo, não admitindo qualquer interpretação que possa estender os impactos advindos do parágrafo em questão para situações não previstas no § 1º.

Além de estabelecer que nesses casos haverá redução naqueles benefícios que não forem considerados mais vantajosos.

E, nesse aspecto, é preciso salientar que a norma é clara ao afirmar que o benefício mais vantajoso será assegurado àquele que incidir nas hipóteses de cumulação nele reguladas, em previsão de natureza cogente, afastando, dessa forma, qualquer interpretação no sentido de que a escolha caberá ao beneficiário.

O que ganha maior significado a partir do momento em que a expressão utilizada é “benefício mais vantajoso” que não se constitui necessariamente no de maior valor, até porque, ainda existem segurados cujo benefício está sujeito à regra da paridade.

Além do que a regra de reajuste consistente na reposição das perdas inflacionárias pode ensejar um reajuste maior do que o advindo da paridade, ante as circunstâncias fáticas e a situação financeira do respectivo Ente Federado.

Contudo, na ausência de uma definição melhor do que seja o benefício mais vantajoso, prevalece o entendimento de que este é aquele que possui maior valor, até porque, nos termos do § 3º a aplicação da redução pode ser revista a qualquer tempo, desde que haja pedido do interessado e a modificação de algum dos benefícios.

Nesse ponto, é preciso frisar que a aplicação das reduções previstas no § 2º somente podem ser aplicadas após a realização da revisão do valor, como estabelece a Portaria n.º 1.467/22:

Art. 165 …

IV – não alteram o critério legal e original de reajustamento ou revisão do benefício que deverá ser aplicado sobre o valor integral para posterior recálculo do valor a ser pago em cada competência a cada beneficiário.

Ou seja, para efeitos de aplicação da modificação prevista no § 3º primeiro deverá ser feita a alteração no valor integral dos proventos para que somente então seja verificado se houve modificação acerca de qual venha a ser o benefício mais vantajoso.

3 – Aplicação a Benefícios Concedidos antes da Reforma

O artigo 24 traz regramento no sentido de que as regras de acúmulo e redução estabelecidas em seus §§ 1º e 2º somente deixarão de ser observadas quando o direito a todos os benefícios tiver sido adquirido antes do advento da Emenda Constitucional n.º 103/19.

Sendo essa a redação do § 4º:

§ 4º As restrições previstas neste artigo não serão aplicadas se o direito aos benefícios houver sido adquirido antes da data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional.

Portanto, a conclusão a que se chega é no sentido de que, nas hipóteses do § 1º, quando o direito a, ao menos, um dos benefícios houver sido adquirido após a reforma de 2019, as regras de redução estabelecidas pelo § 2º deverão ser aplicadas.

Mesmo que essa aplicação enseje a redução do benefício ou benefícios, concedido ou concedidos anteriormente à Emenda Constitucional n.º 103 pelo fato de o benefício posterior ser mais vantajoso do que os anteriores.

Bem como que somente será afastada a aplicação do dispositivo em comento quando o direito a todos os benefícios houver sido adquirido antes do advento da reforma de 2019.

4 – A Renda Previdenciária

E é justamente aí que pode surgir a redução da renda previdenciária, já que a possibilidade de redução de benefícios anteriormente recebidos pode fazer com que a existência de mais de dois benefícios faça com que o total de proventos recebidos antes da concessão do novo benefício seja inferior àquele obtido após a aplicação do artigo 24 da Emenda Constitucional n.º 103/19.

Para exemplificar, imaginemos que o segurado tem duas aposentadorias em um Regime Próprio, concedidas antes de 2019, cujos proventos correspondem a R$ 8.700,00 (oito mil e setecentos reais) e R$ 3.000,00 (três mil reais), respectivamente.

E, em razão do falecimento de sua esposa, passa a receber proventos de pensão por morte no montante de R$ 2.000,00 (dois mil reais).

Trata-se de hipótese que se enquadra no § 1º do referido artigo e que consequentemente está sujeita às reduções previstas em seu § 2º, as quais devem incidir sobre os proventos provenientes das aposentadorias já que estas não se constituem no benefício mais vantajoso.

Assim, ao se aplicar as regras de redução, considerando o salário-mínimo de R$ 1.320,00 é possível afirmar que a aposentadoria de R$ 3.000,00 será reduzida para R$ 2.256,00 (dois mil duzentos e cinquenta e seis reais) e a pensão para R$ 1.728,00 (mil, setecentos e vinte e oito reais) que somados aos 8.000 alcançarão R$ 11.576,00 (onze mil, quinhentos e setenta e seis reais).

Enquanto, no período em que este segurado recebia apenas os proventos das duas aposentadorias a soma de ambos atingia o montante de R$ 11.700,00 (onze mil e setecentos reais).

Evidenciando-se, com isso, que o somatório dos valores recebidos antes da aplicação do artigo 24 correspondentes aos proventos das duas aposentadorias supera a soma dos 3 (três) benefícios (duas aposentadorias e pensão), caracterizando, com isso, uma redução nominal dos valores por ele recebidos.

O que é vedado por nosso ordenamento jurídico.

5 – Direito Adquirido

Uma vez que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXVI assegura a todos os cidadãos a preservação de seus direitos adquiridos, o que, em um primeiro momento, poderia até ensejar o entendimento no sentido de que as reduções não poderiam afetar os benefícios concedidos antes do advento da reforma previdenciária de 2019.

Pois como ensina BARROSO[4] direito adquirido traduz a situação em que o fato aquisitivo aconteceu por inteiro, mas por qualquer razão ainda não se operaram os efeitos dele resultantes. Nessa hipótese, a Constituição assegura a regular produção de seus efeitos, tal como previsto na norma que regeu sua formação, nada obstante a existência da lei nova.

Entretanto, hoje prevalece o entendimento de que não há direito adquirido a regime jurídico, devendo-se observar apenas a irredutibilidade do valor recebido por ele, assegurando, assim, a observância do princípio da irredutibilidade da remuneração/proventos.

Acerca do qual FILHO[5] afirma que protege-se o servidor apenas contra a redução direta de seus vencimentos, isto é, contra a lei ou qualquer outro ato que pretenda atribuir ao cargo ou à função decorrente de emprego público importância inferior à que já estava fixada ou fora contratada anteriormente.

Tendo, inclusive, a Corte Suprema fixado tese no Tema de Repercussão Geral n.º 41 no seguinte sentido:

I – Não há direito adquirido a regime jurídico, desde que respeitado o princípio constitucional da irredutibilidade de vencimentos;

II – A Lei complementar 203/2001, do Estado do Rio Grande do Norte, no ponto que alterou a forma de cálculo de gratificações e, consequentemente, a composição da remuneração de servidores públicos, não ofende a Constituição da República de 1988, por dar cumprimento ao princípio da irredutibilidade da remuneração.

Entendimento esse perfeitamente aplicável ao caso em comento, uma vez que, como demonstrado, haverá a redução do somatório de valores recebidos pelo beneficiário na hipótese antes mencionada.

Isso porque a aplicação irrestrita do disposto no artigo 24 da Emenda Constitucional fará com que o segurado receba proventos totais (considerando, portanto, a soma de todos os valores) inferiores àqueles que estava recebendo antes do advento da reforma previdenciária.

O que contraria o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral, a partir do momento em que o intento do mesmo foi o de assegurar o recebimento do montante remuneratório recebido pelo segurado, antes da modificação do seu regime jurídico.

Ainda que esse montante seja advindo do somatório das remunerações e/ou proventos por ele recebidos.

Razão pela qual a aplicação irrestrita do regramento afronta diretamente o entendimento levado a efeito pela Corte Suprema em sede de repercussão geral.

6 – Irredutibilidade dos Ganhos Nominais

Sendo necessário frisar aqui que essa irredutibilidade alcança apenas os valores nominais recebidos pelo segurado, como já entendeu o Supremo Tribunal Federal senão vejamos:

EMENTA DIREITO ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. GRATIFICAÇÃO ESPECÍFICA DE PUBLICAÇÃO E DIVULGAÇÃO DA IMPRENSA NACIONAL – GEPDIN. INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO A REGIME JURÍDICO E A FORMA DE CÁLCULO DA REMUNERAÇÃO. INOCORRÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS. PRESERVAÇÃO DO VALOR NOMINAL. PRECEDENTES. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 04.6.2010. Jurisprudência firmada no âmbito deste Supremo Tribunal Federal, no sentido de que não há ofensa ao princípio da irredutibilidade de vencimentos, quando preservado seu valor nominal, razão pela qual não se divisa a alegada ofensa aos dispositivos constitucionais suscitados. O Plenário Virtual desta Corte reconheceu a repercussão geral do tema no julgamento do RE 563.965-RG/RN, Rel. Min. Cármen Lúcia, confirmando a jurisprudência desta Casa no sentido de que não há direito adquirido a regime jurídico. Agravo regimental conhecido e não provido. (AI 853892 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 07/05/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 28-05-2013 PUBLIC 29-05-2013)

Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. 2. Direito Administrativo. Servidor público. 3. Transposição do regime celetista para estatutário. Coisa julgada trabalhista. IPC de março/1990. 84,32%. Ausência de direito adquirido a regime jurídico. 4. Manutenção do valor nominal da remuneração. Observância ao princípio da irredutibilidade de vencimentos. Precedentes desta Corte. 5. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 6. Negado provimento ao agravo regimental. (ARE 1373140 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 08/08/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-158  DIVULG 09-08-2022  PUBLIC 10-08-2022)

Ou seja, o valor bruto do somatório dos proventos não pode ser reduzido pela aplicação da redução prevista no artigo 24 da Emenda Constitucional n.º 103/19.

7 – Interpretação Conforme a Constituição

Assim, é possível que o regramento contido no artigo 24 da Emenda Constitucional n.º 103/19 tenha sua inconstitucionalidade reconhecida por se tratar de norma que contraria direito fundamental do segurado, consistente na irredutibilidade de seus proventos e, como tal, cláusula pétrea do Texto Maior.

Situação que também autoriza a invocação da técnica de interpretação conforme a Constituição.

Pois como ensina BARROSO a interpretação conforme a Constituição compreende sutilezas que se escondem por trás da designação truística do princípio. Cuida-se, por certo, da escolha de uma linha de interpretação de uma norma legal, em meio a outras que o Texto comportaria. Mas, se fosse somente isso, ela não se distinguiria da meia presunção de constitucionalidade dos atos legislativos, que também impõe o aproveitamento da norma sempre que possível. O conceito sugere mais: a necessidade de buscar uma interpretação que não seja a que decorre da leitura mais óbvia do dispositivo. É, ainda, da sua natureza excluir a interpretação ou as interpretações que contravenham a Constituição. À vista das dimensões diversas que sua formulação comporta, é possível e conveniente decompor didaticamente o processo de interpretação conforme a Constituição nos elementos seguintes:

1) Trata-se da escolha de uma interpretação da norma legal que a mantenha em harmonia com a Constituição, em meio a outra ou outras possibilidades interpretativas que o preceito admita.

2) Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a norma, que não é o que mais evidentemente resulta da leitura de seu texto.

3) Além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se à exclusão expressa de outra ou outras interpretações possíveis, que conduziriam a resultado contrastante com a Constituição.

4) Por via de conseqüência, a interpretação conforme a Constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal.[6]

Além disso, MIRANDA ensina que a interpretação conforme à Constituição não consiste tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito, o que seja mais conforme com a Constituição, quanto em discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, conquanto não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental.[7]

Admitindo-se sua aplicação quando se está diante de uma das interpretações possíveis para o dispositivo, como, inclusive, já se manifestou a Corte Suprema:

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ACÓRDÃO QUE DECLAROU INCONSTITUCIONAL O ART. 24 DA LEI 13.846/2019, NO QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO ART. 103 DA LEI 8.213/1991. PRAZO DECADENCIAL PARA A REVISÃO DO ATO DE INDEFERIMENTO, CANCELAMENTO OU CESSAÇÃO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. OFENSA AO ART. 6º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E À JURISPRUDÊNCIA DO STF. INEXISTÊNCIA DE OMSSÃO. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. EMBARGOS DECLARATÓRIOS REJEITADOS. 1. Os embargos de declaração são cabíveis nos casos de obscuridade, contradição ou omissão da decisão impugnada, bem como para corrigir eventual erro material. In casu, não se verifica quaisquer dos referidos vícios. 2. Não há omissão quanto à aplicação da técnica de interpretação conforme a Constituição, porquanto esta só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as varias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna. Precedentes. 3. O núcleo essencial do direito fundamental à previdência social é imprescritível, irrenunciável e indisponível, motivo pelo qual pode ser exercido a qualquer tempo, sem prejuízo do beneficiário ou segurado que se quedou inerte. 4. No caso dos autos, admitir a incidência do prazo decadencial importa ofensa à Constituição da República e ao que assentou esta Corte em momento anterior, uma vez que não preservado o fundo de direito na hipótese em que negado o benefício. 5. Embargos de declaração rejeitados. (ADI 6096 ED, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-122  DIVULG 23-06-2021  PUBLIC 24-06-2021)

Portanto, é perfeitamente possível a utilização da técnica de interpretação conforme à Constituição reduzindo-se os efeitos do conteúdo normativo do § 2º do artigo 24 da Emenda Constitucional n.º 103/19.

Nos termos dos ensinamentos de Guilherme Pena de Moraes in CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, editora Atlas, 10ª edição, página 151 in verbis:

A interpretação conforme a Constituição comporta dois subprincípios. Um, com espeque na doutrina norte-americana, funciona como critério de interpretação, pelo qual a norma jurídica somente pode ser declarada inconstitucional quando a invalidade seja manifesta e inequívoca. Outro, com esteio na doutrina alemã, funciona como técnica de decisão, pelo qual uma norma jurídica não deve ser declarada inconstitucional quando possa ser interpretada em consonância com a Constituição, de maneira que o órgão judicial elimina as possibilidades de interpretação incompatíveis com o ordenamento constitucional, com redução do conteúdo normativo, sem afetar a expressão literal da norma subjugada a controle de constitucionalidade. Hodiernamente, quanto aos momentos do processo hermenêutico, há a discriminação entre interpretação conforme a Constituição e declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, na medida em que aquela é imanente à interpretação, eis que consiste na exclusão de possibilidades de interpretação, enquanto que esta é inerente à aplicação, já que consiste na exclusão de hipóteses de aplicação, da norma submetida ao controle de constitucionalidade, sendo manifesto que ambas importam na redução do conteúdo ou programa normativo, vez que o texto da lei ou ato normativo não é alcançado, pela declaração de constitucionalidade (interpretação conforme a Constituição) ou inconstitucionalidade (declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto).

Reconhecendo-se inconstitucional a aplicação do referido parágrafo quando a mesma ensejar a redução da soma dos proventos recebidos pelo segurado antes da sua entrada em vigor ou ao menos que a sua aplicação deverá observar o princípio da irredutibilidade dos proventos.

Até porque, como afirma MORAES[8] a interpretação conforme é plenamente aceita e utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de dar ao texto do ato normativo impugnado compatibilidade com a Constituição Federal, mesmo se necessário for a redução de seu alcance.

Title: Article 24 of EC 103 and the Reduction of Social Security Income

Abstract: The application of the reductions provided for in article 24 of Constitutional Amendment n.º 103/19 reach the benefits granted before and after its entry into force and must be observed by all the Special Regimes, the General Regime and the Social Protection System of the Military. However, in certain cases, it may lead to a reduction in amounts that were already being received by policyholders, thus contradicting the duty to observe the principle of irreducibility of earnings and leading to the need for its interpretation to be made in accordance with the Constitution.

Key words: Reduction – Social Security Income – Irreducibility – Interpretation According to the Constitution.

NOTAS:

[1] MORAES, Alexandre de. DIREITO CONSTITUCIONAL, 33ª edição, editora Atlas, página 31.

[2] MARTINS, Bruno Sá Freire. A NOVA PREVIDÊNCIA DOS SERVIDORES PÚBLICOS, editora Alteridade, página 297.

[3] NÓBREGA, Tatiana de Lima e BENEDITO, Maurício Roberto de Souza. O REGIME PREVIDENCIÁRIO DO SERVIDOR PÚBLICO. Editora Foco, página 139.

[4] BARROSO, Luís Roberto. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO, 9ª edição, editora Saraivajur, página 189.

[5] FILHO. José dos Santos Carvalho. MANUAL DE DIREITO  ADMINISTRATIVO, 33ª edição, editora Atlas, página 1.050

[6] BARROSO, Luís Roberto. INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. 5ª edição, editora Saraiva.

[7] MIRANDA, Jorge. MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL. 2ª edição, editora Coimbra.

[8] MORAES, Alexandre de. DIREITO CONSTITUCIONAL. 33ª edição, editora Atlas, página 549.

 

 

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