A Justiça do Trabalho brasileira não detém competência para processar e julgar demanda de trabalhador marítimo brasileiro no que diz respeito ao contrato de trabalho firmado fora do país. Com esse entendimento, os julgadores da 10ª Turma do TRT-MG, confirmaram, por unanimidade, decisão do juízo da 5ª Vara do Trabalho de Betim.
O caso envolveu trabalhador que alegou ter sido contratado no Brasil para prestar serviço em cruzeiro marítimo. Ele afirmou que sua atuação ocorreu tanto em águas nacionais como estrangeiras. Na ação, pediu a aplicação da legislação brasileira, argumentando tratar-se de empresa com sede no país e não haver prova de que a legislação estrangeira lhe seria mais favorável. Entretanto, a desembargadora relatora Taisa Maria Macena de Lima não acatou a pretensão e negou provimento ao recurso, em voto condutor prevalecente.
Para a magistrada, ficou evidenciado pelas provas que todas as contratações se deram em território internacional, o que afasta a competência da justiça brasileira. Ela explicou que a premissa necessária para a solução da controvérsia, quanto à competência da Justiça do Trabalho, é a definição do local da contratação do profissional para trabalhar em cruzeiros marítimos.
“Pelas regras de Direito Internacional, os países signatários da Convenção de Havana – internalizada no ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto nº 18.871/1929 (Código de Bustamante) – aplicam as leis do local da matrícula da embarcação (lei do pavilhão) às relações de trabalho da tripulação de navios”, registrou, acrescentando que “excepcionam-se à regra os casos de fraude trabalhista, quando não há vínculo entre o país da matrícula da embarcação e o explorador da atividade (‘bandeira de favor’)”.
Trata-se, conforme explicitado, de pactuação internacional que tem por objetivo promover a isonomia entre os tripulantes das embarcações, normalmente compostas por trabalhadores das mais diversas nacionalidades e cuja prestação de serviços ocorre em diversos países e, na maior parte do tempo, em alto mar.
Por outro lado, na eventualidade da pré-contratação de tripulantes no Brasil, a Lei nº 7.064/1982, combinada com as previsões do artigo 21, do CPC, permite a aplicação das leis celetistas, em detrimento à legislação estrangeira, em prol dos “trabalhadores contratados no Brasil, ou transferidos por empresas prestadoras de serviços de engenharia, inclusive consultoria, projetos e obras, montagens, gerenciamento e congêneres, para prestar serviços no exterior”.
Contratos
No caso do processo, ficou demonstrado que o trabalhador celebrou três contratos por prazo determinado. A análise dos documentos revelou que: (1) todos os contratos envolveram embarcações com bandeira do Panamá; (2) os contratos foram celebrados entre o trabalhador, brasileiro, e pessoas jurídicas de direito privado estrangeiras; (3) os dois últimos contratos foram celebrados no exterior; (4) no segundo contrato, não houve prestação de serviços em águas brasileiras; e (5) o primeiro e o terceiro contratos envolveram embarcação que navegou, predominantemente, em águas internacionais.
Assim como o juízo de primeiro grau, a relatora entendeu que a alegação de que a primeira contratação teria ocorrido no Brasil não foi confirmada. As provas indicaram que havia uma empresa (não incluída no polo passivo) que fazia a capacitação e arregimentação dos candidatos, encaminhando os perfis que entendesse adequados às companhias de cruzeiros, por e-mail. A escolha era comunicada à empresa de capacitação, com posterior ciência do tripulante escolhido. O contrato de trabalho era assinado a bordo do navio.
Uma testemunha declarou, nesse sentido, que “ao chegar no navio, o tripulante apresenta os documentos e assina o contrato internacional”. E, em depoimento, o autor confessou que já embarcou fora do Brasil, sendo exigida apenas a carta de embarque para passagem nas barreiras imigratórias. Admitiu que só teve contato com o representante da empresa quando embarcou o navio. “Recebeu de seu chefe, no navio, uniforme, chave de cabine e cartão de ponto, bem como não teve contato com o setor de recursos humanos da empresa”.
A alegação do trabalhador de que teria recebido, assinado e devolvido o contrato de trabalho por e-mail, antes do embarque no navio, não foi confirmada. Também não houve prova de que a contratação tivesse sido operada pela empresa de capacitação e em território nacional, fora do navio.
Por sua vez, a segunda contratação se deu no exterior, por empresa estrangeira, para trabalhar em navio com bandeira do Panamá e com navegação exclusiva em águas internacionais. A situação atrai a aplicação da bandeira da embarcação, conforme artigo 274 do Código de Bustamante e artigo 94 da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar.
Quanto ao terceiro contrato, verificou-se que a contratação se operou na Itália, em navio de bandeira panamenha, para prestação de serviços em águas internacionais, predominantemente. No caso, aplicam-se os artigos 274 e 279 da Convenção Internacional de Havana (Código de Bustamante), ratificada pelo Brasil (Decreto nº 18.871/1929), que dispõem que a lei da bandeira da embarcação deve incidir.
TAC – Termo de Ajustamento de Conduta
Outro aspecto abordado foi a previsão contida no TAC/2016, firmado pelas rés junto ao MPT, no seguinte sentido: “Dada a natureza e particularidade da atividade econômica desenvolvida pela compromitente, o recrutamento e seleção de tripulantes brasileiros, realizado em território nacional por empresas de treinamento e seleção e/ou recrutadores de pessoal, não altera o local da contratação”. A magistrada ponderou que outra compreensão inviabilizaria a atividade empresarial de empresas de recrutamento, visto que a intermediação e/ou pré-contratação não define o local da efetiva contratação.
A magistrada chamou a atenção, ainda, para o fato de o trabalhador não ter indicado a empresa de capacitação no polo passivo, por entender que seu contrato se deu apenas com as companhias de cruzeiros marítimos.
Artigo 651 da CLT
De acordo com o artigo 651 da CLT, a competência da vara do trabalho é determinada pelo local da prestação dos serviços, e se estende para atender às demandas que envolvam empregados brasileiros que trabalham em agência ou filial em outra nação, desde que não haja convenção internacional dispondo o contrário (parágrafo 2º).
No caso, a aplicação do dispositivo foi rejeitada, diante da impossibilidade de se equiparar embarcações estrangeiras a agências ou filiais estrangeiras. Como ressaltado na decisão, as primeiras são consideradas extensão do território do Estado da bandeira, condição não atribuída às últimas.
Grupo econômico
O trabalhador ajuizou a reclamação contra três empresas. Considerando o domicílio na República de Malta e Suíça de duas rés, bem assim a ausência de relação com e/ou prestação de serviços do autor para a empresa brasileira de cruzeiros, que possui objeto social distinto das demais rés indicadas no polo (agenciamento de viagens e passeios turísticos), entendeu-se que seria passível, apenas, a análise, se fosse o caso, de sua responsabilidade solidária passiva, tendo em vista a confissão de integrar mesmo grupo econômico.
A relatora ainda registrou trecho da sentença apontando que, nos termos da ressalva contida no artigo 94, parte final, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, 1982 – aprovada pelo Decreto Legislativo nº 5, de 1987, estabelece os deveres e obrigações do país da bandeira da embarcação em relação, entre outras coisas, às condições de trabalho, tripulação e demais questões sociais em embarcações que arvoram a bandeira do país.
O Brasil também é signatário da Convenção de Direito Internacional Privado de Havana (Código de Bustamante – promulgado pelo Decreto nº 18.871, de 1929), que determina a incidência da lei do pavilhão ou da bandeira da embarcação, conforme se depreende de seus artigos 274, 279 e 281.
Foi pontuado que, ao fixar a tese do Tema 210 de Repercussão Geral, envolvendo interpretação no artigo 178 da Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a prevalência dos tratados internacionais sobre o direito interno, ainda que limitadores de responsabilidade:
“Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”.
No campo infraconstitucional, o parágrafo 2º do artigo 651 da CLT, parte final, determina: “A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade”. Conforme destacado, “a razão de ser do Direito Internacional é regulamentar e definir regras gerais, propiciando aos signatários das Convenções segurança jurídica e aplicação de regras isonômicas entre as partes”.
Nesse sentido, recentemente, após encerrados os contratos analisados, o Brasil promulgou a Convenção Internacional sobre Trabalho Marítimo (MLC 2006), em 12 de abril de 2021, pelo Decreto nº 10.671, que elenca os direitos e obrigações dos tripulantes, com normas sobre remuneração, férias, jornada de trabalho, períodos de descanso, entre outros direitos.
A análise do caso sob o prisma da Lei nº 7.064/1982 não beneficiou o autor, diante da conclusão de que ele não foi contratado no Brasil ou transferido para prestar serviços no exterior. Foi apontado que o artigo 2º da lei prevê que “Para os efeitos desta Lei, considera-se transferido: I – o empregado removido para o exterior, cujo contrato estava sendo executado no território brasileiro; II – o empregado cedido à empresa sediada no estrangeiro, para trabalhar no exterior, desde que mantido o vínculo trabalhista com o empregador brasileiro; III – o empregado contratado por empresa sediada no Brasil para trabalhar a seu serviço no exterior”.
Também foi citada a seguinte jurisprudência:
“CONTRATO DE TRABALHO FIRMADO NO ESTRANGEIRO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS FORA DO PAÍS. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA BRASILEIRA. Contratada a reclamante no estrangeiro, para prestar serviços em navio de bandeira panamenha, em águas internacionais, falece competência ao Poder Judiciário brasileiro para processar e julgar o feito, no que diz respeito ao contrato de trabalho firmado fora do país. (TRT da 3ª Região; PJe: 0010450-71.2020.5.03.0008 (ROT); Disponibilização: 22/04/2022, DEJT/TRT3/Cad. Jud, Página 1117; Órgão Julgador: Nona Turma; Redator: Maria Stela Alvares da S. Campos)”.
Constatou-se que, no caso dos autos, inclusive, os próprios contratos de trabalho firmados definiram que os conflitos deles decorrentes seriam solucionados pela legislação do Estado do registro da bandeira da embarcação, que é a do Panamá.
Pontuou-se que a invocação do autor para incidência do artigo 3º da Lei nº 7.064/1982 (lei mais benéfica para o trabalhador) não surtiu efeito, por falta de demonstração de que a legislação brasileira, no seu conjunto (critério do conglobamento), seria mais favorável do que aquela observada na execução dos contratos.
Nesse cenário, a preliminar de incompetência suscitada foi acolhida.
Decisão da relatora
Em sua decisão, a relatora observou que, pela Lei do Pavilhão ou da Bandeira (constante da Convenção de Direito Internacional Privado de Havana ratificada através do Decreto 18.871/1929 – Código de Bustamante), o caso examinado não está submetido à jurisdição brasileira.
É que os navios em que o autor se ativou ostentavam bandeira panamenha e os contratos previram textualmente que a solução de eventuais controvérsias se daria pelas Leis do Estado de bandeira do navio. Para a desembargadora, o feito não há como ser processado pela Justiça brasileira, uma vez que o contexto probatório não atesta a alegação do trabalhador de que sua contratação tenha ocorrido em solo brasileiro, na forma da Lei nº 7.064/1982. Ao contrário, as evidências foram de que a contratação se deu em território internacional.
Contribuiu para a conclusão o depoimento do sócio da empresa de capacitação, que explicou que a empresa é especializada em treinamentos para desenvolvimento das atividades laborativas em alto mar. Foi apontado que o curso ministrado pela empresa não serve não só para companhias de cruzeiros, como também para mercado de hotelaria em geral.
“Ficou evidente que não há qualquer vínculo dela com as reclamadas e que essa empresa não realiza o recrutamento ou contratação de pessoal para trabalhar nos cruzeiros realizados pelo grupo”, concluiu a magistrada no voto. Ainda considerou que “os contratos celebrados entre o autor e as 1ª e 3ª reclamadas têm caráter internacional e submetem-se à jurisdição do pavilhão das embarcações (artigos 274, 279 e 281 do Código de Bustamante)”.
Na decisão, foram citados os seguintes precedentes do TRT de Minas:
“PRESTAÇÃO DE TRABALHO EM NAVIOS DE CRUZEIRO. EMBARCAÇÃO ESTRANGEIRA. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. Nas hipóteses de contratação e prestação laboral em navios de cruzeiro internacional, não tem incidência a Lei 7.064/82, com as alterações da Lei 11.962/09, cujo pressuposto é a contratação de trabalhadores no Brasil ou transferidos para prestação laboral no exterior. Em casos como o vertente a legislação brasileira não pode ser invocada sob o singelo fundamento da condição mais benéfica, quando inafastável a aplicação da regra geral pertinente ao trabalho de tripulante em embarcação estrangeira, regida pela lei do pavilhão ou da bandeira”. (0011503-71.2017.5.03.0112, Décima Primeira Turma, Relator Convocado Ricardo Marcelo Silva, DEJT 24/07/2020).
“TRABALHO PRESTADO EM EMBARCAÇÕES INTERNACIONAIS – INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO BRASILEIRA.O trabalho em embarcações é regido pela Lei do Pavilhão, ou seja, aplica-se a legislação do país em que o navio é registrado. Este o exato caso dos autos, não sendo a hipótese de aplicação da Lei 7.064/82, com as alterações da Lei 11.962/09, a qual “dispõe sobre a situação de trabalhadores contratados ou transferidos para prestar serviços no exterior”, eis que os contratos a prazo entabulados com a Autora, tripulante, nem mesmo o primeiro, não foram estabelecidos no Brasil, mas no interior da embarcação sob a égide da Lei do Pavilhão.” (0011494-89.2017.5.03.0151 RO, Terceira Turma, Relatora Desembargador Emília Facchini, DEJT 06/02/2019).
Acompanhando o voto da relatora, os julgadores negaram provimento ao recurso. O processo foi extinto sem exame de mérito dos pedidos.
TRT3