Mariana dos Anjos Ramos Carvalho e Silva – Doutoranda em Direito do Trabalho na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), Mestre em Direito Internacional pela USP, Bacharel em Direito pela USP e Advogada Sócia da Anjos Ramos Sociedade de Advogados.
Resumo: As medidas legislativas apresentadas até o final do mês de março de 2020 são importantes diante do momento de insegurança e incerteza decorrentes da pandemia do COVID 19. Todavia, é necessário delimitar que esse cenário não pode representar a salvaguarda para que os direitos trabalhistas sejam negados. A permissibilidade de ampla negociação individual de direitos entre empregador e empregado, sem participação sindical, com total falta de equilíbrio entre as partes, representa um risco ao trabalhador.
Palavras-Chave: COVID, trabalho, flexibilização e Medida Provisória.
Esse informativo tem como finalidade abordar algumas breves reflexões sobre o tema da flexibilização dos direitos trabalhistas em razão da pandemia do COVID-19. O COVID 19 se alastra pelo mundo de forma rápida e há um enfrentamento global na tentativa de minimizar seus impactos em cada realidade. Dessa forma, para facilitar o entendimento de algumas indagações comuns, o artigo foi elaborado em perguntas.
A Lei nº 13.979, Medida Provisória (MP) 927 (enviada pelo governo ao Congresso Nacional) e as demais alterações nas regras trabalhistas que ainda devem ser feitas por conta da pandemia do COVID 19 representam uma flexibilização justificável de direitos trabalhistas?
Primeiro, vale esclarecer que a responsabilidade pela saúde não é só do governo, mas também das empresas. A lei 8080/90, artigo 2, diz que “o dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade”. A empresa precisa cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, além de zelar pelo meio ambiente do trabalho saudável.
É necessária uma balança equilibrada de medidas nesse momento que possa de um lado proteger a empresa (empregador) para que não se observe uma inviabilidade do negócio, mas que especialmente proteja o trabalhador nesse momento de possível colapso do sistema de saúde. Nessa balança, o direcionamento deve respeitar ao previsto na Constituição Federal, o que não se verificou em alguns trechos da Medida Provisória 927.
A Lei 13.979/2020 criada para definir medidas de emergência de saúde pública decorrente do COVID 19 (coronavírus) atribui como falta justificada a ausência no trabalho de empregados do âmbito privado para quando obrigados ase manter em quarentena ou isolamento pelas autoridades (artigo 3º, §3º da Lei), devendo receber seus salários normalmente e o período de afastamento integrará o contrato de trabalho para todos os fins (interrupção do contrato).
Já a Medida Provisória nº 927 veio regular temas que estavam sendo muito questionados pelas empresas e empregados. Como toda Medida Provisória, vale esclarecer que essa Medida não é definitiva e deve passar pelo Congresso Nacional para se converter definitivamente em lei, conforme trâmite previsto na Constituição Federal (artigo 62); o que deveria ser feito o quanto antes.
Muitas das opções previstas na MP 927 (tais como: teletrabalho, banco de horas, concessão de férias coletivas e individuais, por exemplo) já estavam previstas na legislação trabalhista e houve uma adequação ao momento de calamidade pública quanto alguns aspectos, por exemplo: 1. Prazos para estipulação 2. Meios de formalização 3. Necessidade ou não de acordo ou convenção coletiva préviae 4. Tempo de duração das medidas.
A flexibilização prejudicou os trabalhadores ao retirar a necessidade de negociação coletiva, deixando isso possível via acordos individuais, o que retira o equilíbrio entre as partes para a negociação. Há também prejuízo quanto à abertura para a interpretação de que o empregado possa arcar com os custos de estrutura para trabalhar de forma remota. A MP deixou algumas omissões que também podem ser prejudiciais, pois não abordou os prestadores de serviços e os trabalhadores em plataformas digitais, como Rappi, Uber, Ifood, dentre outras, muito expostos ao risco de contaminação nesse período. Mas, em geral, era uma regulamentação necessária e que pacificou os temas principais, direcionando as empresas e trabalhadores.(1)
Quais as mudanças que mais causam impacto nas relações de trabalho?
O que mais causa impacto é dispensar a negociação coletiva, ante a disparidade entre empregado e empregador e as arbitrariedades que podem surgir a partir da liberdade das negociações individuais sem fiscalização e participação das entidades coletivas, nos termos dos artigos 2º e 3º da MP 927. Outra questão é no concernente ao empregador, pois o Estado não desonerou a folha, apenas postergou o pagamento do FGTS.
Ainda, um ponto importante e que tenho visto pouco comentário sobre as mudanças é sobre o artigo 36 da Medida Provisória que acaba por convalidar amplamente as medidas trabalhistas adotadas no período, o que pode gerar muita discussão judicial futura.
O fato da MP 927 permitir que o artigo 501 da CLT seja utilizado em razão da força maior trará muitas demissões, sem que todas as verbas sejam quitadas em sua integralidade.
E, em que pese a orientação do Ministério Público do Trabalho e a previsão expressa da MP 927 abarcar por exemplo a categoria dos domésticos, as alterações ainda não foram implementadas de maneira geral, uma vez que muitos empregadores ainda não os dispensaram.
Por fim, o fato de muitos trabalhadores entrarem em trabalho remoto configurará uma nova fase no Brasil, pois o país ainda não se utilizava desse recurso de forma extensiva, apenas limitado a algumas startups e empresas de tecnologia. A exigência de maior produtividade decorrente dessa forma de trabalho tende a impactar também nas avaliações dos funcionários e nos futuros planos de desligamento.
É justificável que mudanças nas relações, como o home office e a instituição de banco de horas, possam ser determinadas sem acordo entre empregado e empregador?
Primeiramente, é necessário diferenciar as duas figuras. O Home Office instituído nesse momento é o trabalho à distância equiparado ao prestado na empresa, nos termos do artigo 6º da CLT, para muitas empresas, eis que há a possibilidade de controle de jornada e atividades. O teletrabalho, da forma como constou na MP 927, entra como gênero, e pode trazer a aplicação do artigo 75-A e seguintes da CLT, se a prestação de serviços assim se configurar, dispensado o controle de jornada nesse caso.
Vale esclarecer que quanto à questão do acordo entre as partes já temos a regulamentação do artigo 8 da CLT que as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, quando não há lei ou contrato, devem decidir de forma que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. Esse dispositivo é aplicável a situação atual, que é uma calamidade de interesse público.
Para essas duas opções, home office e banco de horas, é sim justificável a determinação sem acordo entre empregado e empregador, porque estamos passando por um momento de calamidade pública, em que o social deve prevalecer sobre o individual.
E ainda que prevista a necessidade de acordo, não seria possível a recusa do empregado diante do caos instalado, uma vez que se está diante do interesse público em que nenhum interesse de classe ou particular poderá prevalecer (artigo 8º da CLT).
O banco de horas autorizado pela MP 927 permite a interrupção das atividades pelo empregador, em favor do empregado ou do empregador, aumentando o prazo para compensação para até dezoito meses a contar da data de encerramento do estado de calamidade pública.
A própria CLT já previa essa possibilidade, em caso de força maior, de prorrogação da duração da jornada pelo tempo necessário até o máximo de duas horas, durante o número de dias indispensáveis à recuperação do tempo perdido, desde que não excedesse 10 (dez) horas diárias (artigo 61, §3º), o que também deve ser observado quando da compensação do banco de horas previstos na MP. A CLT, todavia, limitava a um período não superior a 45 dias por ano, o que foi abrandado pela MP 927.
A medida de proteção recomendada, em geral, é o isolamento ou distanciamento social. A instituição do home office ou banco de horas são as medidas com pouco prejuízo ao empregado, de forma que a ausência de acordo prévio entre empregado e empregador deve impactar pouco diante do cenário atual.
O que justifica a prevalência dos acordos individuais sobre os acordos coletivos?
As alterações trabalhistas decorrem dos impactos da globalização e da já citada precarização em curso no direito do trabalho, o que inclui a possibilidade de acordos individuais em detrimento dos acordos coletivos. Nesse momento em especial não há justificativa para retirar a negociação coletiva, eis que totalmente viável com os recursos tecnológicos realizar reuniões virtuais para tratar e regular os temas.
Mas, a flexibilização das normas trabalhistas já está em curso desde a Reforma Trabalhista com a edição da Lei nº 13.467/2017 que possibilitou o acordo individual sobre prorrogação de jornada, banco de horas (artigo 59 e parágrafos), intervalo intrajornada, horários de descanso de lactantes (artigo 396, §2º da CLT), entre outros.
Contudo, há limitação para os acordos individuais e para negociações coletivas sobre alguns temas previstos no artigo 611- B da CLT e aqueles previstos na Constituição Federal. Por exemplo, é proibido norma para suprimir ou reduzir normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstas em lei ou em normas regulamentadoras. Qualquer acordo individual ou negociação coletiva com esse tema causa preocupação nesse cenário de calamidade pública com o COVID 19.
Como fica caráter orientador por parte dos fiscais do trabalho, durante o período de 180 dias previsto na MP 927?
A MP 927 transforma a atuação dos auditores fiscais do trabalho de “obrigação de assegurar” em caráter orientador. A atuação dos fiscais do trabalho constitui atividade essencial reconhecida internacionalmente. Trata-se também de um dos fundamentos do Estado, pois assegura o princípio da dignidade da pessoa humana.
O caráter orientador dos fiscais instituído pela MP 927 quanto às matérias já definidas em lei como dever de assegurar (artigo 11 da Lei 10.593/2002) torna ainda mais vulnerável o trabalhador obrigado a exercer suas atividades durante a pandemia.
A MP 927 estabelece então o caráter orientador para normas de cumprimento de disposições legais e regulamentares, inclusive as relacionadas à segurança e à medicina do trabalho, no âmbito das relações de trabalho e de emprego; a verificação do recolhimento e a constituição e o lançamento dos créditos referentes ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS); o cumprimento de acordos, convenções e contratos coletivos de trabalho celebrados entre empregados e empregadores; dentre outros.
Ou seja, a justificativa do governo seria a incompatibilidade com as demais regulamentações previstas na MP 927,o que não se configura na realidade, eis que reduzirá consideravelmente a atuação essencial dos fiscais do trabalho e colocará em risco a atividade laboral segura.
A MP 927 determinou que a contaminação por coronavírus não poderá ser tratada como um acidente de trabalho no caso de não haver comprovação e, ao mesmo tempo, dispensa o trabalhador de exames médicos periódicos e coloca o prazo de 60 dias, após o encerramento do estado de calamidade pública, para os exames demissionais. Será mais difícil comprovar que a contaminação por coronavírus se tratou realmente de doença ocupacional?
Para os trabalhadores da área da saúde com risco muito alto (médicos, enfermeiras, dentistas, paramédicos, técnicos de enfermagem, profissionais que realizam exames ou coletam amostras e aqueles que realizam autopsias(2))e alto (fornecedores de insumos de saúde, e profissionais de apoio que entrem nos quartos ou ambientes onde estejam ou estiveram presentes pacientes confirmados ou suspeitos, profissionais que realizam o transporte de pacientes, como ambulâncias, profissionais que trabalham no preparo dos corpos para cremação ou enterro) de exposição me parece que será praticamente automático esse nexo causal. Certamente, eles serão os mais atingidos.
Já para empresas cuja atividade não seja na área da saúde, em geral, poderá ser mais difícil a comprovação. Porém, vale sempre lembrar que a prova testemunhal para os processos trabalhistas é essencial. Por exemplo, comprovar por testemunhas que a empresa sabia de um caso de COVID 19 – coronavírus interno e mesmo assim, foi omissa no cuidado com saúde, exigiu que o empregado continuasse trabalhando presencial, o que ocasionou a contaminação de outros. Essa será uma forma eficiente de ajudar nessa comprovação, conseguindo nesse momento não congestionar os trabalhadores da área de saúde para atividades de exames periódicos que não são urgentes.
Isso importa dizer que, em que pese a determinação da MP 927, a responsabilidade do empregador não está completamente afastada, sendo passível de comprovação o nexo causal entre o trabalho e a contaminação pelo coronavírus. Todavia, esse encargo a princípio fica com o empregado.
Como já temos um número alto de empregados com doenças profissionais, doenças do trabalho e acometidos por acidente do trabalho, não relacionados ao COVID 19, essa norma da postergação dos exames periódicos e demissionais se mal interpretada pode levar ao desligamento arbitrário e ilegal de empregados acometidos de doenças.
O governo, por meio da MP 928, reviu a possibilidade de que contratos de trabalho possam ser suspensos por até quatro meses e sem o pagamento de salário aos trabalhadores. Seria importante o governo regulamentar nova suspensão?
A MP 927 trouxe a possibilidade de suspensão e imediatamente já veio a MP 928 revogando essa previsão, eis que houve muita crítica por todos os setores. Nos moldes propostos pela MP 927, não seria interessante para nenhum setor, pois não acarretaria renda e garantia de emprego, dois alicerces para o trabalhador e para a recuperação da economia.
A própria CLT já permite o chamado lay off que é a suspensão do contrato de trabalho por um período de dois a cinco meses para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador, desde que previsto em acordo ou convenção coletiva e concordância formal do empregado, podendo o empregador conceder ajuda compensatória durante o período de suspensão contratual. O que difere da redação do revogado artigo 18 da MP 927 é a necessidade de aquiescência dos empregados e obrigatoriedade da participação da entidade coletiva. Nessa hipótese também resta resguardado que, se houver dispensa no curso da suspensão ou nos três meses posteriores, há o pagamento de uma multa.
Outra alternativa já prevista na legislação trabalhista vigente seria a redução geral temporária dos salários dos empregados da empresa por se tratar de caso de força maior enquanto perdurar seus efeitos (artigo 503 da CLT), bem como a redução do salário ou jornada pode ser pactuada através de convenção ou acordo coletivo de trabalho, que deverão prever proteção aos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento normativo (artigo 611,§3º da CLT).
Vale esclarecer que países que também sofreram os impactos da pandemia optaram por garantir a liquidez das empresas através de subsídios e suspensão de pagamento de tributos, além da instituição de seguro aos que perderem seus empregos independente dos limitadores temporais, como a Espanha e França, a fim possibilitar a manutenção de renda aos trabalhadores e garantir o papel social do Estado, além de tentar reequilibrar os prejuízos.
Nesse sentido, se o governo optar pela possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, além de estabelecer prazos, deverá garantir a manutenção dos empregos durante o afastamento e posteriormente, bem como a participação dos sindicatos nas negociações coletivas sobre o tema e subsídios aos trabalhadores, a fim de complementar e/ou garantir o recebimento de remuneração; caso não haja nova regulamentação a respeito.
A médio e longo prazo, embora o cenário ainda esteja incerto, as relações de trabalho no país vão ser transformadas por conta da atual crise?
As relações de trabalho serão transformadas pela tecnologia. Essa já era uma realidade, independente da chegada da pandemia e da decretação da calamidade pública em razão do COVID19.
Há um movimento natural de que o trabalho à distância se torne cada vez mais utilizado diante das inovações tecnológicas, uma vez que traz benefícios como: economia de tempo de deslocamento do empregado, minimiza custos com o estabelecimento comercial, bem como pode mitigar os riscos de acidente de trabalho.
Por outro lado, com a chegada da crise, a precarização se agravará, uma vez que os prestadores e autônomos não podem paralisar suas atividades eis que não possuem os direitos do vínculo de emprego e se submeterão às condições impostas pelos tomadores a fim de garantir sua subsistência e de seus familiares.
Tal situação destacará a importância da intervenção do Estado nas relações de trabalho, o que já tem sido demandado por alguns setores. A finalidade dessa intervenção será reequilibrar o mercado econômico em observância ao que prevê a Constituição Federal ao preconizar que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e deverá regrar-se pelos ditames de justiça social (artigo 170).
Outros detalhes sobre o tema
Em que pese o governo estadual ter decretado o fechamento de comércios, estabelecimentos comerciais, ressalvou setores que deveriam ter melhor avaliação, tais como agências bancárias, construção civil e call center.
No caso dos bancários, os sindicatos já estão atuando a fim de evitar dispensas e garantir a tomada de medidas para proteção de seus empregados como regime de revezamento, redução da jornada e restrição de atividades nas agências, além de incentivo dos clientes ao uso das plataformas digitais, uma vez que a legislação não impôs tais providências.
Outra hipótese ideal de atuação do governo seria com a finalidade de evitar rescisão contratual por motivo de força maior em que há extinção da empresa ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, prevista no artigo 501 e 502 da CLT, hipótese em que a rescisão contratual é paga pela metade e pode gerar muitas dispensas. O governo poderia, por exemplo, aumentar a abrangência do Seguro-Desemprego, extinguindo os critérios de tempo de emprego e modalidade de dispensa. Deveria haver medidas voltadas aos incentivos fiscais e às contribuições sociais para desafogar o caixa da empresa e permitir a manutenção da renda mensal aos trabalhadores e dos empregos. O ideal seria garantir renda mínima para, de um lado, socorrer os mais necessitados e, de outro, fomentar a economia.
Conclusão
As medidas legislativas apresentadas até o final do mês de março de 2020 são importantes diante do momento de insegurança e incerteza decorrentes da pandemia do COVID 19. Todavia, é necessário delimitar que esse cenário não pode representar a salvaguarda para que os direitos trabalhistas sejam negados. A permissibilidade de ampla negociação individual de direitos entre empregador e empregado, sem participação sindical, com total falta de equilíbrio entre as partes, representa um risco ao trabalhador.
Notas:
(1) Há inclusive nota técnica CONAFRET 01.2020 do Ministério Público do Trabalho nesse sentido. Disponível em: https://mpt.mp.br/pgt/noticias/nota-conafret-corona-virus-01.pdf. Acesso em 01/04/2020.
(2) Referência do Parecer do Ministério Público do Trabalho – disponível em: https://mpt.mp.br/pgt/noticias/nota-tecnica-conjunta-02-2020-pgt-codemat-conap-1.pdf. Acesso em: 01/04/2020.