Madeline Rocha Furtado – Especialista em Gestão em Logística na Administração Pública e Direito Público. Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa. Professora, consultora, palestrante e escritora.
Sumário: Introdução – A Lei de Licitações e os processos de contratações públicas – Referências.
Introdução
São muitas inovações no texto da Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), sendo algumas novidades decorrentes da aplicabilidade atual de legislações já existentes, o que traz certo conforto aos agentes públicos, mas outras regras não tão disseminadas na Administração. É o caso da arbitragem.
Muito embora a arbitragem seja um sistema de resolução de controvérsia bastante antigo no mundo, sua aplicabilidade vem crescendo exponencialmente nos últimos anos, inclusive no Brasil, especialmente após a Lei nº 9.307/96.
Historicamente, verifica-se que a utilização da arbitragem no Brasil originou-se em Portugal, visto que o sistema jurídico medieval português reconhecia a arbitragem como forma alternativa de solução de conflitos.(2)
Atualmente, o tema apresenta-se de forma diferente entre Brasil e Portugal, pois, embora os dois países contemplem o instituto da arbitragem, no ordenamento português houve a constitucionalização dos Tribunais Arbitrais.(3)
É sabido que a arbitragem pode ser de direito (nos termos da Lei) ou de equidade (conforme entender do árbitro) a critério das partes (art. 2º da Lei nº 9.307/96), porém, no caso da arbitragem na Administração Pública, de acordo
com a Lei nº 13.129/2015 (art. 2º, §3º), está será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade. Desse modo, no Brasil, a arbitragem é instituída pela Lei nº 9.307 e reconhecida como constitucional pelo STF desde 2001.
Conforme afirma(4) Yuri Maciel Araújo: “o sucesso é tamanho que o Brasil já figura entre os países que mais recorrem a essa modalidade de resolução de conflitos” e segundo o autor, “os fatores de franco desestímulo ao desenvolvimento da arbitragem somente vieram a ser superados com a edição da mencionada lei”. Esse novo panorama, trazido pela Lei nº 9.307/96, deu-se em especial, pelos seguintes motivos:
– Possibilidade de as partes recorrerem ao Judiciário, no caso de uma delas opor resistência ao processo arbitral (art. 6º, parágrafo único).
– Sentença arbitral prolatada com o mesmo efeito de sentença judicial (art. 31).
Entretanto, em 2005, a Lei de Arbitragem teve significativa alteração pela Lei nº 13.129, que possibilitou a utilização desse instituto pela Administração Pública (art. 1º, §1º) em assuntos que tratem de direitos patrimoniais disponíveis. Tal núcleo de aplicabilidade foi bastante discutido na doutrina e com algumas divergências acerca da “disponibilidade dos direitos patrimoniais” pela Administração Pública, em razão da indisponibilidade do interesse público envolvido.
Porém, essa discussão já foi ultrapassada pelo entendimento de que o que é “indisponível é o interesse público, e não o interesse da Administração”. Nesse diapasão, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) já se manifestou(5) pela aplicação do juízo arbitral em litígios administrativos, quando presentes direitos patrimoniais disponíveis da Administração Pública.
Em nova manifestação do STJ(6) sobre o tema, destaca-se posicionamento da Ministra Regina Helena Costa no processo (Conflito Positivo de Competência nº 139.519-RJ) entre a ANP (Agência Nacional de Petróleo) e a Petrobras, em que se posicionou: “Sempre que a Administração contrata, há disponibilidade do direito patrimonial, podendo, desse modo, ser objeto de cláusula arbitral, sem que isso importe em disponibilidade do interesse público”.
Na esfera municipal, o município de São Paulo instituiu uma política de “Política de Desjudicialização”, conforme prévio no artigo 2º da Lei nº 17.324/2020, trazendo algumas ações e visando a alcançar a resolução de conflitos nos órgãos do Município, bem como entre particular e a Administração Pública municipal direta e indireta por meios autocompositivos. A citada lei tem como ação a indicação do arbitramento das controvérsias não solucionadas por meios autocompositivos, o que foi regulamentado pelo Decreto nº 59.963/2020.
Uma vez entendida tal aplicabilidade na Administração, observa-se que não poderia ser diferente, dadas as diversas situações de conflito existentes e crescentes na sociedade, exigindo uma evolução nos tratamentos das relações contratuais existentes. Pode-se tomar como exemplo a atual situação enfrentada pela pandemia da Covid-19, que traz de forma impactante a necessidade de mudanças nas tratativas dos acordos firmados antes de essa situação devastadora ocorrer. Muitas regras precisaram ser quebradas ou adaptadas ao direito provisório para resolver controvérsias emergidas no contexto da Covid-19.
Mas foram várias as judicializações das situações apresentadas durante a pandemia e nem sempre com o resultado esperado.
Assim, o instituto da arbitragem como um sistema de resolução de conflitos pacífico, alternativo ao Poder Judiciário, traz como diferenças explícitas: um meio privado de solução de controvérsias diante da possibilidade de escolha dos árbitros (não pertencentes ao quadro do Estado) pelas partes. Outra premissa é que o árbitro escolhido poderá decidir e impor a decisão às partes. Tais características impõem uma relevante autonomia privada com finalidade diversa do Judiciário.
A Lei de Licitações e os processos de contratações públicas
A par do esgotamento do sistema judiciário no Brasil, é importante a introdução da arbitragem na Administração Pública, porém bem mais relevante a sua inserção na Lei de Licitações e Contratos Públicos, o que poderá trazer maior alívio operacional do Poder Judiciário, visto que muitas demandas acabam se acumulando nos Tribunais, conforme Relatório do CNJ,(7) assim como ocorre na União Europeia.(8) O tema “resolução de conflitos” está previsto no CPP (Código de Processo Civil) brasileiro (artigo 3º, §§1º, 2º e 3º), no entanto há um dilema a ser levantado, que se refere à questão da substituição da confiança nos processos dos tribunais judiciais pelos arbitrais ou outros meios.
Para operacionalizar a arbitragem nos novos processos de contratação pública previstos na Lei nº 14.133/2021, é possível que haja regulamentações posteriores, mas as regras do procedimento arbitral em alguns setores da Administração já foram disciplinadas, como é o caso do Decreto nº 10.025/2019, que trouxe pontos importantes, como a publicidade e o credenciamento das Câmaras Arbitrais (artigo 10).
No âmbito da Administração Pública Federal, a AGU (Advocacia Geral da União), por meio da Portaria nº 226/2018, revogada pela Portaria nº 320/2019,(9) instituiu o Núcleo Especializado em arbitragem da Advocacia-Geral da União no Estado de São Paulo (NEA-SP). O núcleo tem a função de representar a União de forma extrajudicial. A AGU estabelece, por meio de portaria, o rol de requisitos para credenciamento das Câmaras Arbitrais, conforme o objeto.(10)
Entretanto, é possível concluir que tais mecanismos são inovadores pela sua peculiaridade no âmbito de aplicação.
Nos termos do artigo 138 da Lei nº 14.133/2021 sobre as variadas possibilidades de extinção do contrato, observa-se que, além da extinção “consensual, por acordo entre as partes, por conciliação, por mediação ou por comitê de resolução de disputas”, esta poderá ser efetivada por decisão arbitral. Isso conforme “cláusula compromissória ou compromisso arbitral, ou ainda por decisão judicial” (inciso III).
Diante das possibilidades de extinção trazidas pela Lei, faz-se necessário uma análise prévia do instituto a ser utilizado, verificando qual é mais adequado ao caso concreto, como foi previsto no referido Decreto nº 10.025/2019, ao prever sobre a possibilidade de utilizar outros meios de solução de controvérsias, antes de submeter à arbitragem, como o próprio acordo administrativo, a mediação, a conciliação ou escolha de Comitês de Disputa (Disputes Boards), como uma solução moderna e mais eficiente em razão da composição técnica do grupo.
Assim, mesmo quando convencionada a arbitragem no contrato e surgindo o conflito, é importante atentar ao objeto discutido, uma vez que um acordo pode resolver questões administrativas do próprio contrato. Nesse entendimento,
cita-se a seguinte situação analisada pelo Recurso Especial nº 904.813-PR (2006/0038111-2), no qual se discutia o caráter patrimonial do objeto da arbitragem, ou seja, seria possível que “o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo” fosse objeto de julgamento arbitral?
No julgado, ficou entendido que: “Com efeito, a controvérsia estabelecida entre as partes é de caráter eminentemente patrimonial e disponível, tanto assim que as partes poderiam tê-la solucionado diretamente, sem intervenção tanto da jurisdição estatal, como do juízo arbitral”. Vê-se que a questão em tela, além de ser direito disponível, nem precisaria ser discutida no âmbito arbitral nem judiciário, podendo ser resolvida mediante acordo entre as partes.
Há, na doutrina, outros questionamentos sobre a aplicabilidade da arbitragem.
Conforme afirmam11 Ferreira e Farias (2018), algumas questões devem ser levantadas sobre o tema, em especial sobre a “possibilidade de criação e utilização de precedentes arbitrais, como também de precedentes judiciais”,
entre outras questões.
Uma vez que há a existência de outros mecanismos inovadores, como o “Disputes Boards” ou Comitê de Resolução de Conflitos, é interessante uma discussão prévia com a área de planejamento da contratação para inserção dos
mecanismos nos futuros contratos, inclusive como insumo a ser considerado nos riscos.
Conforme se verifica, há muitos caminhos a serem desbravados na seara da extinção dos contratos administrativos, no que diz respeito aos MASCs (Meios Alternativos de Solução de Controvérsias), trazendo impactos na atuação prática dos gestores de contratos, que, de forma incipiente, começa a ter contato com meios alternativos ao Poder Judiciário, tendo que compreender os institutos todos instantaneamente, como se já fizessem parte da sua lida diária.
É claro que se esperam maiores definições procedimentais acerca dos institutos jurídicos que podem parecer de fácil aplicabilidade, mas carecem de prévias avaliações e internalização dos agentes.
Uma crítica se faz: a realidade brasileira dos contratos administrativos é multifacetada, e a Lei é para todos. Enquanto alguns gestores estão buscando meios alternativos e solução de controvérsias, outros estão aguardando os últimos
suspiros da Lei nº 8.666/93, na esperança de uma prorrogação da sua utilização, mediante as dificuldades operacionais existentes nos órgãos, em especial nos municípios menores.
Referências
ARAÚJO, Yuri Maciel. Arbitragem e devido processo legal. São Paulo: Almedina, 2021.
FERREIRA, Daniel Brantes; FARIAS, Bianca Oliveira de. A arbitragem e o precedente arbitral e judicial: uma análise histórica e comparativa entre Brasil e EUA. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 26, n. 102, p. 171-209, abr./jun. 2018. Disponível em: https://bdjur.tjdft.jus.br/xmlui/handle/tjdft/42204. Acesso em: 19 ago. 2021.
OLIVEIRA. Gustavo Justino. Arbitragem administrativa no Brasil e em Portugal. Disponível em: http://www.adambrasil.com/arbitragem-administrativa-no-brasil-e-em-portugal/. Acesso em: 19 ago. 2021.
Notas:
(1) Publicado anteriormente no Observatório da Nova Lei de Licitações, em 20 de agosto de 2021. Disponível em: http://www.novaleilicitacao.com.br/2021/08/20/breve-analise-da-arbitragem-e-a-inovacao-na-nllc-lei-no-14-133-2021/.
(2) FERREIRA, Daniel Brantes; FARIAS, Bianca Oliveira de. A arbitragem e o precedente arbitral e judicial: uma análise histórica e comparativa entre Brasil e EUA. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 26, n. 102, p. 171-209, abr./jun. 2018. Disponível em: https://bdjur.tjdft.jus.br/xmlui/handle/tjdft/42204. Acesso em: 19 ago.2021.
(3) OLIVEIRA. Gustavo Justino. Arbitragem administrativa no Brasil e em Portugal. Disponível em: http://www.adambrasil. com/arbitragem-administrativa-no-brasil-e-em-portugal/. Acesso em: 19 ago. 2021.
(4) A RAÚJO, Yuri Maciel. Arbitragem e devido processo legal. São Paulo: Almedina, 2021. p. 17.
(5) STJ – Supremo Tribunal de Justiça, REsp. nº 904.813, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 20.10.2010, v.u., DJU, 28 fev. 2012.
Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21612526/recurso-especial-resp-904813-pr-2006-0038111-2-stj/inteiro-teor-21612527.
(6) Idem. […] CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO ARBITRAL E ÓRGÃO JURISDICIONAL ESTATAL. CONHECIMENTO. ARBITRAGEM. NATUREZA JURISDICIONAL. MEIOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITO. DEVER DO ESTADO. PRINCÍPIO DA COMPETÊNCIA-COMPETÊNCIA. PRECEDÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL EM RELAÇÃO À JURISDIÇÃO ESTATAL. CONTROLE JUDICIAL A POSTERIORI. CONVIVÊNCIA HARMÔNICA ENTRE O DIREITO PATRIMONIAL DISPONÍVEL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O INTERESSE PÚBLICO. CONFLITO DE COMPETÊNCIA JULGADO PROCEDENTE (STJ, CC nº 139519 RJ 2015/0076635-2, S1 – Primeira Seção, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julg. 11.10.2017, DJe, 10 nov. 2017). Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/524705866/conflitode-competencia-cc-139519-rj-2015-0076635-2/inteiro-teor-524705872.
(7) CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2019. Brasília: CNJ, 2019. Anual. 236f. I – Poder Judiciário – estatística – Brasil. II – Administração Pública – estatística – Brasil. p. 219. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 17 ago. 2021.
(8) HE 2019 UE JUSTICE SCOREBOARD. Communication from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Central Bank, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions COM (2019) 198/. ISSN 2467-2254. Disponível em: https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/justice_scoreboard_2019_en.pdf. Acesso em: 17 ago. 2021. Vide Painel de Avaliação da Justiça na UE relativo ao ano de 2019. “Esta sétima edição do Painel de Avaliação da Justiça da UE mostra que um grande número de Estados-Membros continuou os seus esforços para melhorar ainda mais a eficácia dos sistemas judiciais nacionais. No entanto, ainda existem desafios para garantir a total confiança dos cidadãos nos sistemas jurídicos dos Estados-Membros em que possam estar em risco garantias de estatuto e posição dos juízes e, portanto, a sua independência. A Comissão tomou as medidas necessárias e continua a acompanhar a situação nos Estados-Membros. Está comprometido a garantir que qualquer reforma da justiça respeite o direito da UE e as normas europeias em matéria de Estado de direito”.
(9) Núcleo Especializado em arbitragem. Portaria nº 226, de 26 de julho de 2018, revogada pela Portaria nº 320, de 13 de junho de 2019. Ver […] “Art. 1° Fica instituído, na Consultoria-Geral da União, o Núcleo Especializado em Arbitragem (NEA), unidade responsável pelas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos e de contencioso arbitral em que a União seja parte ou interessada”. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/composicao/consultoriageral-da-uniao-/arquivos/190613_portaria_agu_320_de_13_de_junho_de_2019_-_institui_o_nucleo_especializado_em_arbitragem_-_edi.pdf. Acesso em: 17 ago. 2021.
(10) AGU. ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO. Portaria nº 21, de 22 de julho de 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-normativa-agu-n-21-de-22-de-julho-de-2021-334055608. Acesso em: 19 ago. 2021.
(11) FERREIRA, Daniel Brantes; FARIAS, Bianca Oliveira de. A arbitragem e o precedente arbitral e judicial: uma análise histórica e comparativa entre Brasil e EUA. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 26, n. 102, p. 171-209, abr./jun. 2018. Disponível em: https://bdjur.tjdft.jus.br/xmlui/handle/tjdft/42204. Acesso em: 19 ago. 2021. Os autores afirmam que “A arbitragem, por sua vez, encontra-se em amplo crescimento (em todos os sentidos: volume financeiro envolvido, ampliação de áreas de atuação e interesse do mercado público, privado e da academia). Felizmente o país já possui centros de arbitragem qualificados e estabilizados no mercado com suas listas de árbitros que gozam de credibilidade e reconhecimento”.