O 3º Juizado Especial Cível Central da Comarca de Macapá, sob a condução da juíza substituta Sara Zolandek, condenou empresa aérea a indenizar em R$ 15 mil o autor de uma Ação Cível, homem trans impedido de acessar voo de Macapá (AP) para Belém (PA), por danos morais. Consta nos autos do processo nº 6001407-38.2024.8.03.0001 que o autor tinha a viagem planejada com quatro meses de antecedência e o objetivo era chegar à capital paraense na véspera de um show para o qual já tinha comprado também os ingressos. A magistrada também concedeu gratuidade de Justiça ao autor, apesar da argumentação contrária pela companhia ré.
De acordo com o autor, no momento do embarque, apesar de estar com a certidão de nascimento em seu novo nome e a identidade em seu nome antigo, funcionários da empresa aérea não autorizaram seu embarque na aeronave devido à divergência entre o nome constante do bilhete de embarque e o que consta no seu documento de identificação com foto. Afirmou ainda que, após informar que iria a um show a ser realizado em Belém, a passagem foi remarcada para o dia seguinte e, no ato do embarque, não foi exigida a apresentação de qualquer documento de identificação. Pretendia, ao final, ser indenizado por danos materiais e morais.
Em defesa, a Latam negou falha na prestação dos serviços e atribuiu ao autor a responsabilidade pelo não embarque por deixar de apresentar o documento de identificação com foto contendo o seu novo nome, correspondente àquele constante da reserva emitida.
A magistrada salientou, em sua sentença, que “se aplicam ao caso as normas consumeristas, porque o autor é consumidor (art. 2º do CDC) dos serviços colocados no mercado pela ré, fornecedora (art. 3º do CDC)”.
“Por essa razão, o caso será analisado sob a ótica da responsabilidade civil objetiva (art. 14 do CDC), que independe de culpa. Portanto, a requerida somente tem dever de indenizar se configurados o ato ilícito, dano e nexo de causalidade entre ambos”, afirmou nos autos.
A juíza verificou que não havia controvérsia quanto à emissão do bilhete no novo do autor e que, no momento do embarque, o cidadão lesado apresentou certidão de nascimento atualizada e RG emitido com seu antigo nome.
“A controvérsia nos autos reside em apurar se a documentação apresentado era apta a viabilizar o embarque do passageiro na aeronave e se houve ato ilícito por parte da ré, a fim de analisar a responsabilidade civil da fornecedora”, observou a magistrada na decisão.
A companhia aérea juntou aos autos orientação emitida referente à documentação exigida para embarque de passageiros com nome social, mas estas não se aplicavam segundo a magistrada.
“Embora a requerida haja fundamentado sua defesa no fato de que o autor não poderia embarcar com ‘nome social’ no bilhete diverso de seu nome civil, a situação é diversa. Na verdade, Pedro já contava com seu novo nome civil, tanto é assim que apresentou sua certidão de nascimento atualizada no momento do embarque. Não se tratava de ‘nome social’, como quer fazer crer a ré, mas do nome reconhecido juridicamente como tal”, disse na sentença.
De acordo com a magistrada, havia somente divergência entre o nome constante da certidão de nascimento atualizada e no RG apresentado. “Não se pode alegar que era impossível verificar a identidade do passageiro no momento do embarque, visto que os documentos, em conjunto, possibilitavam a completa identificação dele (o RG contém foto, em conjunto com a certidão, que contém o nome constante do bilhete). (…) Verifica-se da certidão juntada aos autos (ID 5507480), que há, no primeiro campo, a informação quanto ao número do CPF de Pedro. O mesmo número constante do RG, que traz também o CPF (ID 5507479)”, detalhou a magistrada.
Ela ressaltou ainda que os dois documentos mencionam a filiação (nomes dos pais) e a data de nascimento (idênticas, por óbvio), além da informação de que Pedro não tem irmão ou irmã gêmeo ou gêmea, “o que exclui a possibilidade de que se tratasse de pessoa nascida dos mesmos pais, no mesmo dia”.
“Todas essas informações, em conjunto com a narrativa do passageiro de que se trata de pessoa trans, cujos documentos haviam sido recentemente adequados à realidade, levavam à conclusão inarredável de que o nome do bilhete (Pedro) era mesmo o nome do indivíduo que se apresentou ao embarque”, ressaltou a juíza na sentença, ao que acrescentou “tanto é assim que, no dia imediatamente posterior, a companhia aérea embarcou o autor sem qualquer problema com sua documentação”.
A magistrada enfatizou, ainda que o ordenamento jurídico brasileiro “repudia com veemência qualquer tratamento discriminatório baseado em orientação sexual ou identidade de gênero”, e citou inclusive a Constituição Federal de 1988, que “consagra como direito fundamental a igualdade (art. 5º) e a dignidade da pessoa humana” entre os fundamentos da República (art. 1º, III, CF).
Com outros muitos argumentos de diversas origens a juíza julgou que estava evidenciado o ato ilícito da requerida ao deixar de reconhecer o autor por seu próprio nome, impedindo-o de utilizar o serviço por ele adquirido.
“Tendo em vista a natureza grave do dano (discriminação por identidade de gênero), a condição econômica das partes, o efeito pedagógico da condenação e a necessidade de reparação integral, fixo a indenização em R$ 15.000,00 (quinze mil reais)”, decidiu.
Em sua sentença, a juíza Sara Zolandek ressaltou ainda que “o ato atingiu pessoa que, por sua própria condição, já é vulnerável, em momento em que estava construindo uma nova história (pois acabara de adequar seu registro civil) e que, por isso, estava mais sensível a ações de discriminação”.
Para conferir a íntegra da sentença com todas as suas argumentações, além das manifestações das partes no processo, basta copiar o número do processo (6001407-38.2024.8.03.0001) e colar no campo Consulta de Processos (na página inicial do Portal do TJAP) com o botão PJe1g (Processo Judicial Eletrônico do 1º Grau) selecionado.
TJAP