Eduardo Luiz Santos Cabette – Delegado de Polícia Aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal.
Marcelo Vieira Cavalcante – Delegado de Polícia do Estado de São Paulo, Pós-Graduado em D. Público, Prof. da Acadepol/SP em Processo Penal, Coor. da Unid. da Acadepol/SP de Ensino e Pesquisa de São José dos Campos – Deinter 1.
Em um caso concreto, o E. Juízo Cível de Colina/SP expediu regularmente Mandado de Prisão Civil por débito injustificado de alimentos contra um indivíduo. A Polícia Civil cumpriu a ordem de prisão, mas não constou seja na Certidão de Cumprimento, seja no Boletim de Ocorrência respectivo, a devida ciência ao preso sobre seus direitos constitucionais (direito de advogado, preservação da integridade física, nome do executor da prisão, comunicação de familiares, direito ao silêncio). Assim também não consta que o preso tenha sido submetido a exame de corpo de delito cautelar.
Instado a manifestar-se, o representante do Ministério Público do Plantão Judiciário da Comarca de Barretos se insurgiu contra a execução da prisão, embora reconhecendo que a ordem judicial estava formalmente impecável. Pleiteou então o relaxamento da prisão, sendo acompanhado em suas razões, sem outros argumentos aditivos, pela Defensoria Pública.
Por fim, o Juiz Plantonista de Barretos acatou as motivações do Ministério Público e Defensoria, determinando o relaxamento da prisão por vício formal em sua execução pela Polícia Civil, com a consequente soltura do preso. Frise-se que também o magistrado reputou o mandado de prisão formalmente em ordem.
A proposta neste ensaio é aferir os desdobramentos da presente decisão à luz do “decisum” judicial. Como a decisão se apresentou em um final de semana e nos finais de semana encontra-se dispensada, excepcionalmente, a realização de audiência de custódia, tendo em vista o provimento número 2651 de 2022 do Egrégio Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o artigo 2º , parágrafo 2º, do Provimento Conjunto de número 52 de 2022 da Presidência e Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e os artigos 8º e 8º – A da Recomendação número 62 de 2020 do Conselho Nacional de Justiça, por consequência é fato que o “preso” se encontra em uma Unidade Policial aguardando a decisão judicial. Caberá aos agentes da Unidade o devido cumprimento da ordem judicial, no caso concreto, em face do relaxamento da prisão, o cumprimento do alvará de soltura.
Uma dúvida pode surgir nesse imbróglio.
Como deve agir a Autoridade Policial responsável pela Cadeia Pública ao receber o respectivo Alvará de Soltura que invalida a execução da prisão, mas corrobora a legalidade da ordem que a ensejou? Será que se deve proceder à soltura do preso, devolvendo o Mandado de Prisão à Autoridade Judicial expedidora e esperando nova ordem? Esta dúvida não surgiria se estivéssemos falando do relaxamento de uma prisão em flagrante. Neste caso dúvidas não existiriam uma vez que com o relaxamento da prisão desaparece a força da prisão em flagrante e assim não havendo outros processos impeditivos a colocação em liberdade é caminho natural.
Voltamos a registrar, todos estes questionamentos, surgem na apreciação judicial (Audiência de Custódia) dos Mandados de Prisão Cautelares e Definitivos cumpridos. Esta divergência não se apresenta, na apreciação judicial dos Autos de Prisão em Flagrante, realizados pelas Autoridades Administrativas, uma vez que se fulminados (em razão de algum vício) desaparece a prisão. Se o Juízo desejar, neste caso, a manutenção da prisão, decretará a Prisão Preventiva (havendo os requisitos previstos nos artigos 311 e seguintes do Código de Processo Penal). Diferente é na apreciação, em audiência de custódia, dos cumprimentos dos Mandados de Prisão decorrentes de Medidas Cautelares ou Definitivas. Havendo vícios na formalização do registro este relaxamento não fulmina a ordem judicial existente.
Parece-nos, portanto, inviável esse procedimento de soltura e aguardo de nova ordem com relação ao caso concreto em estudo. Resta claro e evidente que nem Ministério Público, nem Defensoria se manifestaram contra a ordem de prisão, mas tão somente contra a forma como foi executada. No mesmo diapasão vem a decisão judicial respectiva, relaxando a prisão, mas não invalidando o mandado correlato. Nem poderia um Juiz de Plantão invalidar uma ordem de prisão de outro Juiz de primeiro grau que era o competente para decidir sobre a expedição ou não do mandado. Isso porque se assim agisse, o Juiz Plantonista praticaria o que se convencionou chamar de “supressão de instância”. O Juiz Plantonista não é órgão revisor (recursal) das decisões do colega de mesmo piso de outra comarca ou de qualquer outro magistrado. Não obstante, não é possível alegar que não caberia o relaxamento ao Juiz Plantonista, mas tão somente regularizar a situação. Embora o Código de Processo Penal trate do “relaxamento” apenas quando regula a Prisão em Flagrante (artigo 310, I, CPP), a Constituição determina expressamente que toda prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária (artigo 5º., LXV, CF). Obviamente a norma constitucional não é restritiva e subordina as regras do Código de Processo Penal, não o contrário. A ilegalidade da prisão que leva ao seu necessário relaxamento pelo magistrado não se reduz à Prisão em Flagrante, mas se estende a qualquer prisão ilegal. Dessa forma, o Juiz agiu corretamente, relaxando a prisão e mandando soltar o preso. Não somente agiu corretamente; ele era obrigado constitucional e legalmente a assim agir em uma visão conglobante do ordenamento jurídico. A questão a ser devidamente compreendida são os limites impostos pela situação de fato, quando ao magistrado de plantão não era dado tornar a ordem judicial de outro juiz inválida. Se fizesse isso, incorreria em grave irregularidade, violando regras de competência e a proibição de supressão de instâncias. Mas, não foi o que aconteceu.
Obviamente também não caberia ao Delegado de Polícia que receba o Alvará respectivo desconsiderar a existência de ordem de prisão válida. Ora, se o Juiz Plantonista não é órgão revisor de outro magistrado, muito menos o seria o Delegado.
Assim sendo, a ordem judicial de prisão se acha incólume. A Autoridade que receber a determinação de relaxamento deve, portanto, dar cumprimento ao Alvará de Soltura e, em seguida, em atenção ao jargão dos despachos de cumprimento de alvarás de soltura (“se por al. não estiver preso”), dar novamente cumprimento à ordem de prisão, agora observando todas as formalidades e cautelas legais e constitucionais apontadas como faltantes pelo Ministério Público, Defensoria Pública e Judiciário. Então será feita uma certidão pelo funcionário responsável, constando que deu o devido cumprimento ao Alvará de Soltura, mas que deixou de colocar o preso em liberdade, tendo em vista a existência de ordem válida de prisão, a qual foi cumprida com as formalidades legais. Em seguida todos os atos deverão ser comunicados tanto ao Plantão Judiciário, como ao E. Juízo que expediu corretamente a ordem de prisão.
Em havendo nesse dia a possibilidade de audiência de custódia, esta deverá ser cumprida normalmente com todas as suas formalidades, ocasião em que certamente a prisão deverá ser mantida por ausência de vícios. É evidente que os dias em que esteve preso o indivíduo deverão ser objeto de detração com relação ao prazo assinado pelo Juiz emissor da ordem, não importando se a prisão era irregular por questões formais. Nesse passo, o preso não pode ser prejudicado por um erro estatal.
Cabe ainda ao preso o direito de pleitear indenização do Estado por prisão ilegal, sendo a responsabilidade civil estatal objetiva e respondendo seus agentes somente a título de culpa ou dolo. No caso concreto, seria possível, em tese, ocorrer direito de regresso contra a Autoridade Policial, tendo em vista reconhecimento de negligência (culpa) quanto ao primeiro ato de cumprimento da ordem judicial. Entretanto, isso é apenas uma possibilidade de ação, sendo de se lembrar que não se deve confundir o direito de ação com o direito material discutido. No caso enfocado, embora tenha ocorrido a prisão ilegal, não parece ser possível apontar um efetivo prejuízo material e/ou moral ao detido. Afinal, a ordem de prisão existia e era regular, ele deveria mesmo ser preso, bem como não haverá prejuízo quanto ao tempo de encarceramento, tendo em vista a necessária detração. Parece assim que há, em tese, direito de ação, mas não existe fundamento para acatar o pedido sob o prisma material. Nem mesmo a responsabilidade objetiva do Estado, afasta a necessidade de comprovação do dano (material ou moral), bem como de seu nexo de causalidade com o ato praticado pelo órgão público. Também não se caracterizaria de forma alguma crime de Abuso de Autoridade, uma vez que todas as figuras constantes da Lei 13.869/19 são dolosas e até mais que isso, exigem dolo específico previsto no artigo 1º., § 1º., da lei de regência. A única responsabilização possível seria a do servidor público na seara administrativa, considerando a falta do devido cuidado no cumprimento das normas legais e regulamentares, tudo dependendo, porém, de uma avaliação das circunstâncias e do devido processo administrativo – disciplinar com ampla defesa e contraditório.
Importante de se ressaltar que este “ensaio” não tem o condão de indicar qualquer crítica à decisão formulada no caso concreto. Juízes de Direito e Delegados de Polícia, algumas vezes aquele e todas as vezes estes, são chamados a decidir imediatamente sem margens para pedidos de vista ou estudos mais aprofundados. Questão apresentada decisão tomada! Quantas vezes leis ingressam no ordenamento jurídico (data da sua publicação) e lá estão os Delegados de Polícia decidindo ainda de maneira muito provisória. Nas palavras do ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, o Delegado de Polícia “é o primeiro garantidor da Legalidade e da Justiça”. E no exercício desse mister podem haver tropeços, motivados muitas vezes até pela falta de um protocolo mais detalhado ou instruções da administração pública.
Pode parecer que a atuação do Ministério Público, Defensoria Pública e do Judiciário tenha sido algo inócuo em termos práticos, já que o detido continuará preso. No entanto, o efeito da medida é relativo ao controle externo da atividade policial e função de “custus legis” inerente ao Ministério Público, sendo todo o procedimento uma espécie de ação pedagógica com o intento de que as formalidades – garantia constitucionalmente previstas para o cumprimento de Mandados de Prisão sejam devidamente observadas pelas autoridades estatais executivas.
O “Caso Colina” serve de alerta, em especial à Polícia Civil, para reiterar as orientações aos seus Agentes Públicos, quanto aos cuidados nos registros de prisões -captura e criação, em consonância com o Poder Judiciário, dos protocolos de atendimento nos presentes casos. O relaxamento, no “Caso Colina”, era de uma prisão civil de Alimentos, mas poderia ser uma prisão em decorrência de sentença condenatória com trânsito em julgado por crime hediondo.