A 6ª Turma levou em conta a situação de vulnerabilidade extrema do trabalhador
A Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho manteve o direito de um trabalhador rural de Valença do Piauí (PI) de ajuizar reclamação trabalhista no local onde reside, embora tenha prestado serviços em fazendas de Minas Gerais e São Paulo. Ao rejeitar recurso de uma fazenda e de três pessoas físicas envolvidas no caso, o colegiado levou em conta a situação excepcional de vulnerabilidade do trabalhador, diante da comprovação de que ele havia sido submetido a condições análogas à escravidão.
Promessa
Na ação, ajuizada contra a fazenda e três pessoas físicas, o lavrador disse ter tomado conhecimento de que o dono de uma agência de viagens de sua cidade estaria contratando pessoas para trabalhar no corte e no plantio de cana-de-açúcar em Delta (MG). As despesas de transporte seriam pagas por um empreiteiro local e descontadas posteriormente.
A promessa incluía a possibilidade de carteira assinada e alojamento, alimentação e transporte para o local de trabalho sem custo. Em março de 2020, 35 trabalhadores embarcaram com destino à cidade mineira, num percurso de mais de dois mil quilômetros.
Realidade
Ao chegar, o grupo foi dividido em casas que, segundo o lavrador, não tinha nenhuma estrutura. Eles tinham de dormir em papelões e foram informados de que teriam de pagar aluguel, comprar alimentos e preparar a comida. O material de trabalho e os equipamentos de proteção individual (EPI) também foram descontados.
De Delta, eles eram levados diariamente para um local identificado como “Fazenda Brasil”, distante cerca de três horas, onde não havia água nem local para refeições. De acordo com a reclamação, os familiares tiveram de contratar um ônibus para resgatá-los, seis meses depois da viagem inicial.
Competência territorial
O transportador, em sua defesa, argumentou que não deveria fazer parte da ação, porque não tinha contratado o trabalhador, mas apenas vendido as passagens. O empreiteiro seguiu na mesma linha e também questionou a competência da Vara do Trabalho de Valença do Piauí para julgar o caso. O fundamento foi o artigo 651 da CLT, segundo o qual a competência é determinada pela localidade onde o empregado prestar serviços, ainda que tenha sido contratado noutro local.
No depoimento, ele confirmou que trabalhava em Delta, transportando trabalhadores para fazendas entre Minas Gerais e São Paulo em seu próprio ônibus, mas não forneceu os nomes dos contratadores.
A “Fazenda Brasil” não apresentou defesa, e pesquisas realizadas pela Justiça não encontraram uma pessoa jurídica com esse nome.
Condenação
O juízo de primeiro grau reconheceu a situação como trabalho escravo contemporâneo. Segundo a sentença, havia um mecanismo de aliciamento de trabalhadores do Piauí para outros estados que, ao chegarem ao destino, eram vítimas de servidão por dívida e submetidos a condições degradantes.
O juiz também registrou a vulnerabilidade do trabalhador, “por sua condição social, com pouca instrução formal, o que o torna ainda mais propício para acreditar nas falsas promessas do recrutador”, ao condenar o empreiteiro a pagar todas as verbas trabalhistas devidas e indenização por dano moral de R$ 10 mil.
Acesso à justiça
A sentença foi mantida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região (PI), que rejeitou o argumento da incompetência do juízo de Valença. Para o TRT, a competência territorial prevista na CLT tem de ser compatível com o princípio constitucional do acesso à justiça e da proteção às pessoas sem recursos econômicos, de modo a permitir que ajuízem sua ação na localidade em que tenham melhores condições de fazê-lo.
Atuação nacional
Ao rejeitar o recurso de revista do empreiteiro, o relator, ministro Augusto César, observou que, em situações excepcionais, o TRT tem considerado válido o ajuizamento da ação trabalhista no local do domicílio do empregado, nos casos em que a empresa preste serviços em âmbito nacional e em que ao menos a arregimentação ou a contratação tenham ocorrido nesse local.
Para o relator, o fato de o lavrador, arregimentado no Piauí, ter prestado serviços em fazendas de cana-de-açúcar com atuação em duas outras unidades da federação demonstra a atuação nacional do empreiteiro.
Situação excepcionalíssima
Outro ponto destacado pelo ministro foi a comprovação de que o trabalho ocorreu em condições análogas à escravidão, o que demonstra situação extrema de vulnerabilidade do trabalhador. Na avaliação do relator, obrigar o lavrador a ajuizar a ação no foro onde foi submetido à condição de escravidão não se compatibiliza com a interpretação do dispositivo da CLT nem com as Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tratam do trabalho forçado e de sua abolição e de questões relacionadas aos direitos humanos e à dignidade do trabalhador.
A decisão foi unânime.
Processo nº RR-301-73.2020.5.22.0109.
https://www.tst.jus.br/-/lavrador-submetido-a-trabalho-escravo-em-mg-e-sp-pode-ajuizar-a%C3%A7%C3%A3o-no-piau%C3%AD
TST