Geovane De Mori Peixoto – Doutor e Mestre em Direito Público (UFBA). Mestre em Políticas Sociais e Cidadania (UCSAL). Professor Adjunto de Direito Constitucional da UFBA e da Faculdade Baiana de Direito.
Hoje dia 5 de outubro de 2021 a Constituição da República Federativa do Brasil completa trinta e três anos da sua promulgação. A angústia e reflexão que proponho nesse breve escrito é saber se ela continua viva ou está morta.
Antes de responder contextualizemos o nosso “estado de crise” que sustenta a pergunta chave deste texto.
Não há círculo social hoje, seja a academia, os veículos midiáticos, a opinião pública, entre outros, que não assevere que estamos vivendo uma grave crise. O que seria essa CRISE?
A palavra CRISE no senso comum define uma situação de desestabilização, porém não consegue especificar o que seja esta, associando-a, então, a uma ideia de incertezas. Ao analisarmos a sua origem etimológica, do grego “krísis”, o sentido é de ação ou faculdade de agir, portanto associado a um momento decisivo, diante de uma dificuldade.
Conjugando o senso comum e a origem etimológica da palavra, então, pode-se concluir que a sociedade nunca viveu fora da CRISE, pois a história relata que a vida do ser humano em grupo sempre foi permeada por tensões, conflitos, disputas (físicas, econômicas, ideológicas, etc), potencializadas, por sua vez, pelo aumento dos recursos tecnológicos, e consequente amplificação da complexidade social, nos impondo um “mundo de incertezas” insuperável.
A insuperabilidade, nesse caso, decorre da sua constante renovação, uma vez que sempre estamos diante de novos (ou até mesmo velhos(1)) conflitos, que se estabelecem ciclicamente, em oposição a uma ideia que ele poderia ser linear, com uma estrutura de início, meio e fim; todavia não é o que acontece, sempre se renovando, uma vez que a sua conclusão, inevitavelmente, proporá uma contra resposta, analisando sob uma perspectiva crítica.
Diante desse quadro, poder-se-ia analisar a “história da humanidade”, ironicamente falando, todavia o que se propõe neste presente escrito, é uma sintética análise da atual conjuntura de crise constitucional brasileira, e a perspectiva de vida de nossa Constituição.
A Constituição cidadã consiste num dos maiores projetos engendrados pela política nacional, fruto de um processo de reconstrução democrática e de preparação para um glorioso futuro, permeada de grandes esperanças, notadamente na estabilização democrática de nossas instituições, na construção de um país com menos desigualdades, capaz de se desenvolver economicamente assegurando a dignidade dos seres humanos, e a estes, principalmente, conferindo uma rol extenso e inesgotável de direitos fundamentais(2).
Um projeto jurídico complexo e difícil de ser efetivado, grandioso e pretencioso, registre-se, mas que requereria um trabalho político árduo e de longo prazo para sair do seu status de programaticidade constitucional e transformar a realidade do país.
Muitos embarcaram nessa empreitada e sonharam juntos…
Os desafios de nossas múltiplas “crises” então entram em cena nos anos seguintes: inflação, instabilidades institucionais, conservadorismo político exacerbado, processo de impeachment de Presidentes, e outros que os nossos leitores conhecem bem de nossa história.
Não podemos deixar de dedicar importante destaque para a construção e disseminação de um processo neoliberal globalizado, capitaneado pelos países do denominado capitalismo central. Este impôs como condição para admissão neste jogo uma série de adaptações políticas, econômicas e jurídicas, que afetaram diretamente o nosso Direito e a Constituição.
O passo seguinte foi a busca de estabilização econômica amoldada ao receituário do capitalismo neoliberal globalizado, que, por sua vez, impunha uma série de restrições a afetar diretamente um dos principais aspectos da Constituição de 1988: a efetivação dos direitos fundamentais sociais, como forma de garantir o bem-estar e a justiça social(3).
Essa pauta assumida pelo Constituinte, tendo como uma de suas molas propulsoras a participação efetiva de movimentos sociais, continuava em aberto e sendo perseguida por muitos que ainda acreditavam no projeto.
A partir de um acordo com o sistema capitalista, este com a sua face reformulada e suas novas demandas, entretanto, permitiu que muitas conquistas no plano social e dos direitos fundamentais fossem alcançadas, com reformas significativas no país, porém sempre sobre a sombra deste “inimigo” que criava barreiras para dificultar a plena efetivação de nosso projeto constitucional.
Como o neoliberalismo impõe as suas regras em um plano mundial, ele não pode admitir que as suas regras não sejam também implementadas e concretizadas por países do capitalismo periférico, como é o caso do Brasil.
Seguindo a nossa síntese, chegamos ao momento mais trágico desse processo, no momento em que ele completara trinta anos e deveria estar maduro o suficiente para não mais admitir retrocessos e ataques à sua estrutura.
O que presenciamos é um verdadeiro “teatro de horrores”! Retrocessos em todos os campos. Número crescente de desempregados, fome, miséria, inflação descontrolada, crise econômica, governo incapaz e incompetente para lidar com os problemas do país, que, ainda por cima, foram amplamente agravados pela pandemia do covid-19.
Consequência: paralisia e retrocesso do projeto constitucional. Retrocesso no plano dos direitos sociais, desassistência, conservadorismo supressor de liberdades, etc. Chegamos ao absurdo de assistir cidadãos irem às ruas para em nome da liberdade de expressão e da democracia pedirem a volta do nefasto AI5, ou seja, queremos matar a democracia em nome da democracia! Talvez sequer entendam a inconsistência lógica do que pediram. Talvez o ideal seja definir como histeria coletiva.
Os ataques à democracia se multiplicam nesse contexto. A Constituição passa a ser vista por quem defende esta loucura como uma inimiga. Acusada levianamente de “comunista”, por quem sequer compreende o sentido do que é o comunismo, ressalte-se, pedem a sua morte.
A Constituição de 1988 que tem se mostrado resiliente na sua história, capaz de proteger àqueles que se encontram na condição de vulnerabilidade, e ainda manter vivo o sonho de um projeto de uma país melhor, assim, sobrevive na UTI.
Ninguém desconhece que os ataques institucionais a esse projeto ocorrem por parte dos três poderes. Sem isentar nenhuma, além de acrescentar outras instituições, tanto da esfera pública como da privada, sem nomear, por, além de não ser um libelo acusatório, uma limitação do tamanho do escrito.
Mesmo assim, ainda assistimos pessoas comprometidas com o projeto, também em todos os campos (acadêmico, judicial, político, Ministério Público, sociedade civil, partidos políticos, etc.), que além de o defender no plano do discurso, lutam e efetivam no plano da vida, preservando o seu potencial de mudança e defendendo direitos essenciais para a dignidade dos seres humanos.
Com defeitos, mediante erros e acertos, seguimos a nossa história com a Constituição de 1988. Morta não, em estado de perigo sim. Viva e capaz de ainda representar, como dito anteriormente, uma de nossas grandes conquistas e um dos nossos maiores projetos políticos, para quem ainda sonha com um país melhor para todos.
Finalizamos com a citação de um trecho do discurso do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, o Sr. Ulysses Guimarães, no dia de sua promulgação, há exatos trinta e três anos atrás, ao dizer que:
“(…) A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma.
Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.
Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina(…)”
(Ulysses Guimarães em 05/10/1988)
Não é um texto comemorativo, mas sim um convite à reflexão e uma convocação à luta que se faz necessária pela manutenção da nossa constituição VIVA!
Notas:
(1) Lembro aqui do saudoso poeta Cazuza, ao dizer que “eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um grande museu de novidades …” (“O Tempo não Para” – Agenor De Miranda Araújo Neto / Arnaldo Pires Brandão)
(2) A inesgotabilidade decorre da própria dicção do texto constitucional ao dizer que: “Art. 5º. (…) §2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros…”. (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988)
(3) “Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.” (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988)