A (ir) responsabilidade do acusador e do julgador

Georges Humbert – Advogado e professor, é pós-doutor em Direito, Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra – Portugal, doutor e mestre em direito pela PUC-SP.

 

Nos últimos anos, o país elevou o combate a indigitada corrupção e contra outros tipos de ilícitos contra o erário e o interesse público, vírus que contaminam todo planeta. Contudo, no mesmo passo, aumentaram os abusos, usurpação de competências, atropelos ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, às prerrogativas dos advogados e outros direitos e garantias fundamentais democráticas, ínsitos ao cidadão e aos fundamentos de um estado de direito, base mesmo da dignidade da pessoa humana. Neste contexto, surgem alterações no campo legislativo nacional, notadamente ao ensejo da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), da Lei da Declaração da Liberdade Econômica (LDDLE), da Lei de Abuso de Autoridade (LAA) e da Reforma da Lei de Improbidade Administrativa (LAI). Resta saber, houver reflexo no tocante à responsabilidade dos agentes acusadores e julgadores?

No campo da Lindb(DECRETO-LEI Nº 4.657), diversas são as consequências, postas a partir do art. 20. Primeiro que acusador e julgador não podem mais produzir atos com base em valores jurídicos abstratos, isto é, sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão, com justificativa para a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, nem mesmo podem olvidar de indicar, de modo expresso, suas consequências jurídicas, administrativas, o que inclui as econômicas, ambientais, sociais, financeiras e outras aderentes. Ademais, na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo o dos direitos dos administrados.

Caso esta e outras condições de controle, de acusadores e julgadores, não forem respeitadas, poderá se configurar o dever pessoal do agente público (seja ele magistrado, procurador, promotor, defensor, controlador), de compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos, desde que demonstrados o dolo ou erro grosseiro.

Noutro passo, quanto à LDDLE (Lei Nº 13.874/19), fica determinado a presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário. Assim sendo, não se pode exercer controles, acusar e condenar sem sólidos elementos de prova da má-fé ou culpa grave, pena de responsabilização civil, penal e administrativa do agente público infrator.

Por sua vez, as duas normas citadas se complementam e encontram as possíveis consequências ao ensejo da LAA (Lei Nº 13.869). Esta, valendo de uma antiga e útil classificação de Kelsen, seria uma norma, há um só tempo, primária, isto é que estipulam sanções diante de uma possível ilicitude, e também secundária, ou seja, das que prescrevem a conduta lícita. Neste contexto, desobedecer a LINDB e a LDDE pode configurar o crime de abuso de autoridade, assim como existem crimes de abuso de autoridade já diretamente postos pela LAA, crimes estes cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.

Destacam-se, aqui, o crime de requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa, bem como o crime de divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado, sendo que este último continua impune e deve ser levado a efeito contra o acusador e julgador, mas, sobretudo, sobre quem divulga, travestido de difusor de notícias de interesse público e de arauto da liberdade de imprensa.

Finalmente, tem-se a Lia (LEI Nº 8.429/92), recentemente alterada para, alterar as redações do art. 3° e 9°, entre outros, e se conformar aos direitos individuais e humanos fundamentais dos acusados e controlados. Esta estabilizou aquilo que a jurisprudência e melhor doutrina já sedimentavam: não há improbidade sem conduta (ação ou omissão) dolosa, isto é, com intenção de lesar a administração pública e obter vantagem ilícita, pois, por óbvio, ninguém é desonesto sem querer ser, por mera negligência, imprudência, imperícia ou erro. Portanto, o acusador, julgador, controlador que imputar improbidade sem prova do dolo, estará ele agindo ilicitamente, podendo ser responsabilizado civil, penal e criminalmente, inclusive por abuso de autoridade.

Pelo exposto, forçoso concluir que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), da Lei da Declaração da Liberdade Econômica (LDDLE), da Lei de Abuso de Autoridade (LAA) e da Reforma da Lei de Improbidade Administrativa (LAI) refletem, substancialmente, na forma, meio e conteúdo de responsabilização dos agentes acusadores e julgadores, sejam eles políticos ou servidores, e de quaisquer dos três poderes. De mais a mais, são normas que, ao contrário do que tem sido veiculado por parte da opinião pública e jurídica, estão conforme a ordem constitucional e as garantias do acusado, formando um microssistema de responsabilização não somente destes, mas também em face de quem acusa, julga e controla, que não podem exercer suas funções abusivamente, com base em meros achismos, suposições e convicções e fora de limites constitucionais e legais, como outrora. Desta forma, o combate das mazelas da corrupção e crimes correlatos será mais efetivo, eficiente, democrático, justo, válido e, porquê não, responsável.

 

 

 

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