Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS.
Finalmente, após 3 anos de uma liminar concedida pelo ministro Luiz Fux, suspendendo a implementação do Juiz das Garantias, está pautado no STF o julgamento sobre a constitucionalidade dos arts. 3º.- B a 3º.- F, do CPP, acrescentados em 2019 pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964). Tais dispositivos legais criaram no Brasil a figura processual do Juiz das Garantias, sem dúvidas a mais importante alteração legislativa já vista no país, desde que entrou em vigor este (e ainda) velho CPP.
As reações vindas dos mais variados setores de nossa comunidade jurídica, desde gente do Poder Executivo, até de uma grande e muito bem significativa parcela do Poder Judiciário e do Ministério Público, mostram a dificuldade que será a efetiva implementação do Juiz das Garantias.
É impressionante mesmo como muitos integrantes do Ministério Público e do Poder Judiciário teimam em conservar o processo penal brasileiro como aquele concebido no século passado, nos anos 40, de tendência rigorosamente fascista, autoritária e inquisitorial. É de assustar também a forma como, sem qualquer embasamento teórico ou científico, abrindo mão de argumentos simplistas, tratam de uma maneira tão rasa e equivocada a criação do Juiz das Garantias.
E, por fim, é desanimadora esta resistência, pois tais reações tornarão difícil que se instaure no país este novo sujeito processual. Será uma tarefa árdua para os defensores de um processo penal democrático e de matriz acusatória.
É preciso, atentos a Dworkin, saber que o cálculo utilitarista que a sociedade eficiente em custos utiliza para determinar como serão os processos criminais é um cálculo que não pode incluir o dano moral. Para ele, devemos distinguir entre o que podemos chamar de dano simples que uma pessoa sofre por meio da punição justa ou injusta, e os danos adicionais que se pode dizer que ela sofre sempre que sua punição é injusta, pelo simples fato dessa injustiça. Chamarei estes últimos de ´fator de injustiça` em sua punição, ou seu dano ´moral`.[1]
Comentando o novo Código de Processo Penal da Província de Buenos Aires e, mais particularmente, o Juiz de Garantias, Bertolino, fazendo como se fora um jogo de palavras – como ele próprio admite -, afirma que com o Juiz de Garantias “a lei processual penal de Buenos Aires pretendeu, antes de qualquer outra coisa, estabelecer a ´garantia de um juiz`” (grifo e aspas no original).
É ainda dele a observação de que a própria denominação legal vincula-o, sem prejuízo de outras considerações, com a realidade das garantias processuais, tratando-se da concretização da dimensão constitucional da jurisdição.[2]
Observa-se que, antes mesmo de disciplinar detalhadamente a competência do Juiz das Garantias, tratou o legislador de estabelecer, no art. 3º-A (cuja constitucionalidade também é objeto do julgamento no STF), que o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Este artigo é uma verdadeira introdução às normas gerais estabelecidas em seguida, pois deixa de uma maneira muito clara que toda a interpretação que se queira fazer em relação aos dispositivos do nosso CPP deverá observar primeira, obrigatória e rigorosamente, as regras e os princípios do sistema acusatório, especialmente o princípio acusatório.
A propósito, Falcone, estudando este princípio, explica que, em razão dele, não pode ser uma mesma pessoa a que realize a investigação e a que decida. Assim, o modelo acusatório pretendeu devolver ao investigado/acusado a qualidade de sujeito de direitos, o que o procedimento inquisitivo negava, transformando-o em um mero objeto de um procedimento inquisitivo, presidido por um juiz instrutor e de acusação.[3]
Ora, se agora há no próprio CPP, dentre os seus primeiros artigos, um em especial que estabelece ter o nosso processo penal uma estrutura acusatória, é dizer, vinculado ao princípio acusatório, proibindo-se qualquer iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação, obviamente que esta norma deverá ser, doravante, observada em todos os processos criminais, e sem tergiversações. Assim, para citarmos apenas alguns exemplos, serão de difícil aplicação, doravante, os arts. 5º, II (1ª. parte), 156 (I e II), 212 (parágrafo único), 385, CPP, dentre outros, pois incompatíveis com um processo penal de estrutura acusatória.
Na verdade, a CF já assim o exigia, mas, como se sabe, aqui no Brasil é preciso que a lei ordinária também o diga, pois há quem sempre queira interpretar a Constituição à luz da legislação ordinária, e não o contrário, como tem que ser.
Conforme Binder, o sistema acusatório vem se impondo na maioria dos países. Na prática, demonstra ser muito mais eficaz, tanto para aprofundar a investigação, como para preservar as garantias processuais.[4]
Para Juan-Luís Gómez Colomer, no sistema acusatório, há necessidade de uma acusação, formulada e sustentada por uma pessoa diversa daquela que vai julgar, para que se possa iniciar e encerrar o processo e, consequentemente, se possa condenar[5], proibindo-se ao órgão julgador realizar funções próprias da parte acusadora”[6], que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregue do julgamento[7].
Segundo Muñoz Conde, o processo penal em um Estado de Direito, não somente deve buscar o equilíbrio entre a busca da verdade e a dignidade dos acusados, como também deve entender a verdade mesma, não como uma verdade absoluta, mas como o dever de fundamentar uma condenação sobre aquilo que, induvidosamente e intersubjetivamente, pode se considerar como provado. O mais, é puro fascismo e a volta aos tempos da Inquisição, em relação aos quais se supõe já termos, felizmente, saído.[8]
Para Ferrajoli, no sistema acusatório, a verdade não pode ser obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto do processo; está condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa. É, em suma, uma verdade mais controlada quanto ao método de aquisição, mas mais reduzida quanto ao conteúdo informativo de qualquer hipotética ´verdade substancial´.[9]
É ainda do mestre italiano a observação de que o sistema inquisitivos e caracteriza por uma confiança tendencialmente ilimitada na bondade do poder e na sua capacidade de alcançar a verdade, ou seja, este sistema confia, não somente na verdade, como também na tutela do inocente às presumidas virtudes do poder que julga.[10]
Com inteira razão Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicianera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime.”[11]
Com efeito, caso a Suprema Corte decida favoravelmente ao Juiz das Garantias (como parece ser a tendência entres os ministros, salvo o relator), teremos, em regra, dois juízes competentes: um que atuará na fase de investigação criminal (atendendo, sempre que solicitado, aos pleitos da polícia e do Ministério Público), e outro que terá competência para instruir o processo e julgar o acusado, liberto (este segundo Juiz), das amarras próprias de uma parcialidade forjada a partir do conhecimento dos elementos informativos colhidos durante a investigação criminal, sem a observância dos postulados do devido processo constitucional.
Aliás, para evitar a contaminação do Juiz da Instrução e Julgamento, os autos que compõem as matérias de competência do Juiz das Garantias deverão ser desentranhados do processo, ficando arquivados na secretaria do Juízo das Garantias, à disposição do Ministério Público e da defesa, ressalvando-se, tão-somente, os documentos relativos às provas não repetíveis, os meios de obtenção e os de antecipação de provas, que serão apensados em separado. Neste caso, ficará assegurado às partes o amplo acesso aos autos arquivados na secretaria.
Eis o ponto central: a imparcialidade do julgador, a primeira exigência de um juiz, que não pode ser, ao mesmo tempo, parte e julgador no conflito submetido à sua decisão, conforme sintetiza Juan Montero Aroca.[12]
A propósito, veja-se a posição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, acerca do papel do Juiz no processo penal de matriz constitucional:
A democracia – a começar a processual – exige que os sujeitos se assumam ideologicamente. Por esta razão é que não se exige que o legislador, e de consequência o juiz, seja tomado completamente por neutro, mas que procure, à vista dos resultados práticos do direito, assumir um compromisso efetivo com as reais aspirações das bases sociais. Exige-se não mais a neutralidade, mas a clara assunção de uma postura ideológica, isto é, que sejam retiradas as máscaras hipócritas dos discursos neutrais, o que começa pelo domínio da dogmática, apreendida e construída na base da transdisciplinariedade. O novo juiz, ciente das armadilhas que a estrutura inquisitória lhe impõe, mormente no processo penal, não pode estar alheio à realidade; precisa dar uma ´chance` (questionando pelo seu desejo) a si próprio, tentando realizar-se; e a partir daí aos réus, no julgamento dos casos penais. Acordar para tal visão é encontrar-se com seu novo papel.[13]
Para ele, a diferenciação destes dois sistemas processuais faz-se através de tais princípios unificadores, determinados pelo critério de gestão da prova. Ora, se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstituição de um fato pretérito, o crime, mormente através da instrução probatória, a gestão da prova, na forma pela qual ela é realizada, identifica o princípio unificador. Com efeito, pode-se dizer que o sistema inquisitório, regido pelo princípio inquisitivo, tem como principal característica a extrema concentração de poder nas mãos do órgão julgador, o qual detém a gestão da prova. Aqui, o acusado é mero objeto de investigação e tido como o detentor da verdade de um crime, da qual deverá dar contas ao inquisidor.[14]
E a lei não deixa dúvidas: o magistrado que na fase de investigação venha a praticar qualquer ato incluído no rol das competências do Juiz das Garantias, ficará impedido de funcionar no processo como Juiz da Instrução e Julgamento. Isso é fundamental para que se lhe garanta, ao menos em tese, a necessária e indispensável imparcialidade própria do sistema acusatório. Trata-se, portanto, de uma nova causa de impedimento, além daquelas já estabelecidas no art. 252, CPP. A violação a este preceito, tornará nulos os atos praticados pelo Juiz impedido, nos termos do art. 564, I, CPP.
A propósito, Ferrajoli afirma que a imparcialidade deve ser, para o Juiz, um hábito intelectual e moral, razão pela qual não deve ter o Magistrado qualquer interesse acusatório; para ele, a função judicial não pode ser contaminada pela promiscuidade entre juízes e órgãos da polícia, que só devem ter relações – de dependência – com a acusação pública.[15]
O Juiz das Garantias será o responsável pelo controle da legalidade de qualquer investigação de natureza criminal, seja aquela levada a efeito pela polícia – por meio do inquérito policial -, seja aquela conduzida pelo Ministério Público – a partir da instauração de procedimento investigatório criminal. Também caberá a ele a salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário.
Esta competência abrange a investigação de quaisquer infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei 9.099/95); nestas, continuam aplicáveis as disposições previstas na Lei dos Juizados Especiais Criminais, especialmente no que diz respeito ao termo circunstanciado de ocorrência (art. 69) e aos acordos civil e penal (composição civil dos danos e transação penal, previstas no art. 72). Observa-se que as disposições da Lei 9.099/95 não se aplicam às infrações penais praticadas em situação de violência doméstica e familiar (art. 41 da Lei 11.340/06 e art. 226 do ECA), tampouco aos crimes militares (art. 90-A, da Lei 9.099/95).
O Juiz das Garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando-se critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal. Nas comarcas em que houver apenas um Juiz, os tribunais locais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às novas disposições.
Aqui, não se vislumbra o obstáculo que estão impondo para impedir que se cumpra a lei. Evidentemente, haverá necessidade da criação de novos cargos de Juízes e, consequentemente, novos gastos. Qual o problema? Não há sempre orçamento para custear aumento de despesas com salários e estrutura física e material do Poder Judiciário? Pois bem. Agora, este orçamento terá que também ser suficiente para arcar com os custos de implementação do Juiz das Garantias.
Nas comarcas em que houver apenas um Juiz (e, sabemos, são muitas em todo o Brasil), e enquanto não forem criados os novos cargos, caberá ao substituto legal do Juiz titular (em observância à garantia do Juiz Natural), caso haja necessidade (ou seja, se o Juiz titular da comarca tiver oficiado na fase investigatória), atuar como Juiz da Instrução e Julgamento. Simples! Não há dificuldade, senão falta de vontade política, o que é inadmissível! Quando se quer, faz-se; quando não se quer, cria-se dificuldade…
A competência do Juiz das Garantias cessará com a citação do acusado (se a denúncia ou queixa for recebida) e, se for o caso, com a absolvição sumária. Neste sentido, observa-se que os arts. 3º.- B, XIV e 3º.-C fazem referência expressa ao art. 399, CPP. Portanto, a ele caberá, após o oferecimento da denúncia ou da queixa, fazer o juízo de admissibilidade da imputação formulada, admitindo-a ou não; se receber a denúncia ou a queixa, deverá, em continuidade, determinar a citação do réu (aplicando, se cabível, os arts. 366 ou 367, CPP) e, após a resposta preliminar (arts. 396 e 396-A), absolvê-lo sumariamente, se for o caso (art. 397, CPP).
Caso não absolva sumariamente o réu, somente então enviará os autos para o Juiz da Instrução e Julgamento, que deverá designar dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.
As questões porventura pendentes serão decididas agora pelo Juiz da Instrução e Julgamento, ressalvando-se que as decisões proferidas pelo Juiz das Garantias não vinculam o Juiz do processo, que deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de dez dias, haja ou não requerimento das partes.
E quais as competências específicas do Juiz das Garantias?
Em primeiro lugar, caberá a ele receber a comunicação imediata da prisão e o auto da prisão em flagrante, a fim de que adote uma das providências estabelecidas nos arts. 310 e 311 do CPP. Assim, a ele competirá zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo, haja ou não pedido neste sentido.
Também ele deverá ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal, seja procedida pela polícia, seja pelo Ministério Público, decidindo sobre o requerimento de prisão provisória ou qualquer outra medida de natureza cautelar, bem como, se houver necessidade, deferir o pedido de prorrogação da prisão provisória ou da medida cautelar já decretada, substituí-las ou revogá-las. No caso de pedido de prorrogação, será obrigatório, independentemente de urgência ou de perigo de ineficácia da respectiva medida, que se estabeleça o contraditório, em audiência pública e oral, e na presença do Ministério Público e de defensor, diversamente do que ocorre na hipótese do art. 282, § 3º., CPP.
Caso haja necessidade da produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis (arts. 155, 156, I, 225, CPP), ao Juiz das Garantias deverá ser dirigido o respectivo requerimento, sempre assegurados o contraditório e a ampla defesa, também em audiência pública e oral, e na presença do Ministério Público e de defensor. Vê-se, portanto, não ser mais possível que o juiz, de ofício, determine a produção de provas consideradas urgentes e relevantes; aliás, nem mesmo durante a instrução criminal (ou seja, durante o curso do processo), tendo em vista que está vedada a substituição pelo Juiz da atuação probatória do órgão de acusação, conforme já ressaltado anteriormente.
Outrossim, será dele a competência para, havendo necessidade comprovada, analisar pedido de prorrogação do prazo de duração do inquérito policial ou do procedimento investigatório criminal, em vista das razões apresentadas, respectivamente, pela autoridade policial ou pelo representante do Ministério Público. Se o investigado estiver preso poderá, mediante representação da autoridade policial (neste caso, ouvido o Ministério Público) ou a partir de requerimento do próprio Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do procedimento investigatório por até quinze dias. Finda esta dilação, e sem que seja concluída definitivamente a investigação, a prisão deverá ser obrigatória e imediatamente relaxada, pois já ilegal.
Observa-se que constituem crimes de abuso de autoridade, estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado, bem como, inexistindo prazo para execução ou conclusão de procedimento, o estende de forma imotivada, procrastinando-o em prejuízo do investigado ou do fiscalizado. (art. 31 da Lei 13.869/19).
Se houver impetração de habeas corpus com o fim de sobrestar ou pôr fim à investigação, caberá ao Juiz das Garantias o seu conhecimento, devendo conceder a ordem sempre que não haja fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento. Afinal, como dizem Afrânio e Souto Maior, para a instauração de um procedimento investigatório de natureza criminal, é preciso à toda evidência, que o fato noticiado à autoridade policial, examinado sempre em tese, encontre tipicidade objetiva em alguma norma penal incriminadora.[16]
A propósito, também constituem crimes de abuso de autoridade, requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa, salvo quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada, bem como dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente. (arts. 27 e 30 da Lei 13.869/19).
Aliás, sempre que haja impetração de habeas corpus, qualquer que seja o pedido ou a causa de pedir, sendo antes do oferecimento da denúncia ou da queixa, também será dele a competência para o processo e julgamento da ação. Em qualquer caso, havendo necessidade, poderão ser requisitados documentos, laudos e informações ao Delegado de Polícia ou ao Ministério Público sobre o andamento da investigação.
Também é de sua competência determinar a instauração do incidente de insanidade mental (art. 149, CPP), além de assegurar prontamente o direito da Defesa de ter acesso a todos os elementos informativos e eventuais provas produzidas no âmbito da investigação, observando-se a Súmula Vinculante 14 e os incisos do art. 7º, da Lei 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil).
Veja-se que, neste caso, pratica crime de abuso de autoridade quem negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível. (art. 32 da Lei 13.869/19). Por sua vez, o art. 7º-B, do referido EOAB, atribui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º.
Se houver requerimento, caberá também a este magistrado deferir pedido de admissão de assistente técnico (art. 159, § 3º, CPP); homologar (ou não) o acordo de não persecução penal (art. 28-A, também acrescentado pela nova lei) e o de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação.
De mais a mais, compete-lhe decidir sobre os requerimentos de interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação, quebra dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico, busca e apreensão domiciliar, acesso a informações sigilosas, bem como, em geral, todos os outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado.
Deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade da Polícia ou do Ministério Público, com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal, devendo as autoridades disciplinar, via regulamento, o modo pelo qual as informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso serão, de modo padronizado, transmitidas à imprensa, assegurados a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão.
Esta é uma questão muito controversa e diz respeito a um aparente conflito entre a liberdade de expressão e de informação e o direito individual de ter a imagem protegida e a honra preservada.
Eis uma matéria muito sensível, assim definida por Escalante: Uma contraposição entre duas modalidades deônticas derivadas da liberdade de expressão ou informação, e o direito à preservação da honra, consistente em que um ato de manifestação de pensamento, opinião ou informação de um deles está permitido por aquelas liberdades e, por sua vez, está proibido pelo direito de preservação da honra alheia. O conflito consiste, em suma, na permissão de opinar e informar e a proibição de lesão do direito à honra.[17]
De toda maneira, é preciso atenção e rigor no cumprimento deste dispositivo, pois o mais que se vê no Brasil é uma exposição absurda, perversa e inconstitucional da imagem de investigados, sem a necessária preservação dos direitos individuais declarados e garantidos pela Constituição. Por outro lado, numa democracia é indispensável que os meios de comunicação tenham a liberdade (com responsabilidade) de informar os cidadãos, com os cuidados para não contribuírem com prejulgamentos e futuras e injustas condenações.
Bem de ver, ademais, que constituem crimes de abuso de autoridade, divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado, bem como antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação. (arts. 28 e 38 da Lei 13.869/19).
Observa-se que não há qualquer razão, seja do ponto de vista das novas disposições, seja em decorrência da CF, para limitar o Juiz das Garantias aos processos na primeira instância; muito pelo contrário, também devem ser observadas as novas disposições processuais penais nas ações penais originárias. Neste caso, quando um Desembargador ou Ministro tiver oficiado na fase de investigação, outro deverá ser o relator para a instrução e para proferir o voto. Qualquer entendimento contrário, fará tabula rasa da finalidade do Juiz das Garantias.
Em relação aos processos pendentes na data da entrada em vigor da nova lei, deve-se atentar para o art. 2º, CPP (a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior). Ou seja, relativamente às ações penais em curso (estejam em primeiro grau, nos tribunais, no STJ ou no STF), se um Juiz, Desembargador ou Ministro deferiu alguma medida requerida durante a fase de investigação, o processo deverá ser encaminhado ulteriormente para outro magistrado, seja o substituto legal, seja um novo relator devidamente sorteado.
A nova lei somente não atingirá os processos em que já houve recebimento da peça acusatória. Esta é uma inafastável conclusão que decorre dos princípios que regem a sucessão das leis processuais penais (formais) no tempo.
Em relação às audiências de custódia, faz-se referência ao § 1º., do art. 3º.-B: O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o emprego de videoconferência. (este dispositivo havia sido vetado pelo Presidente da República, mas o veto foi, posteriormente, derrubado pelo parlamento).
A propósito, a autoridade que deu causa, sem motivação idônea, à não realização da audiência de custódia no prazo estabelecido (24 horas) responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão, ensejando-se também, salvo se houver motivação idônea, a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, permitindo a lei, se for o caso (obviamente), a decretação da prisão preventiva, nos exatos termos dos arts. 312 e seguintes do CPP.
O Juiz competente para a realização das audiências de custódia será aquele designado pela Lei de Organização Judiciária, estando ele, por óbvio, impedido de ser o Juiz da Instrução e Julgamento, pois já teria praticado algum ato relativo ao processo.
Espera-se, portanto, que o STF decida pela constitucionalidade do Juiz das Garantias, derrubando a liminar concedida pelo ministro Luiz Fux. Será, sem dúvidas, a mais importante mudança feita no processo penal brasileiro nos últimos 80 anos.
NOTAS:
[1] DWORKIN, Ronald, Uma Questão de Princípio, SP: Martins Fontes, 2005, páginas 117 e 119.
[2] BERTOLINO, Pedro J., El Juez de Garantías em el Código Procesal Penal de La Provincia de Buenos Aires, Buenos Aires: Ediciones Depalma, 2000, páginas 56 e 122 (tradução livre).
[3] FALCONE, Roberto A., El Principio Acusatorio – El Procedimiento Oral en la Provincia de Buenos Aires y en la Nación, Buenos Aires: Ad-Hoc, 2005, p. 19 (traduçãolivre).
[4] BINDER, Alberto, Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43 (traduçãolivre).
[5] COLOMER, Juan-Luís Gómez, Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, Editorial Ariel, S.A., Barcelona, 1989, p. 230 (tradução livre).
[6] SENDRA, Gimeno, Derecho Procesal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1987, p. 64.(tradução livre).
[7] BARREIROS, José António, Processo Penal-1, Almedina, Coimbra, 1981, p. 13.
[8] CONDE, Muñoz, Búsqueda de la Verdad en el Proceso Penal, Buenos Aires: Depalma: 2000, p. 107(tradução livre).
[9] FERRAJOLI, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, pp. 44 e 45 (tradução livre).
[10]FERRAJOLI, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 604 (traduçãolivre).
[11]COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.
[12] AROCA, Juan Montero, Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186 (tradução livre).
[13] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, http://emporiododireito.com.br/backup/o-papel-do-novo-juiz-no-processo-penal-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/, acessado em 23 de abril de 2015.
[14] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, http://emporiododireito.com.br/introducao-aos-principios-gerais-do-direito-processual-penal-brasileiro-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/, acessado em 23 de abril de 2015.
[15] FERRAJOLI, Luigi, Derecho y Razón – Teoría Del Garantismo Penal, Madrid: Editorial Trotta, 1998, 3ª. edição, páginas 580, 582 e 583 (tradução livre).
[16] JARDIM, Afrânio Silva, e AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de, Direito Processual Penal – Estudos e Pareceres, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, 12ª. edição, p. 221.
[17] ESCALANTE, Mijail Mendoza, Conflictos entre Derechos Fundamentales – Expresión, Información y Honor, Lima: Palestra Editores, 2007, p. 117 (tradução livre).