Bruno Pereira Magalhães – Especialista em Direito Constitucional Aplicado.
RESUMO: O presente artigo acadêmico tratou de analisar a Lei n° 13.869/19, ainda intitulada por muitos como a Nova Lei de Abuso de Autoridade, que teve como ponto fundamental a discussão no que concerne a constitucionalidade material dessa novel normativa, a qual fora objeto de intensos debates durante o seu nascimento no seio do ordenamento jurídico brasileiro e que atualmente ainda traz inúmeros questionamentos sobre a sua real validade no mundo dos fatos. Paralelamente a isso, ante a ampla imensidão de termos abertos e não taxativos, atrelado ao fato da severidade das penas, mas com pouca efetividade, foi analisada a possibilidade de enquadrar-se numa lei penal simbólica. Para o fim proposto, foi indispensável se debruçar sobre algumas obras que analisam o teor substancial do referido preceito legal, já que muitos entendem como, no mínimo, contestável o seu espírito jurídico constitucional. Ao final, pôde-se perceber que há razões para os doutrinadores combaterem tanto a sua legitimidade, motivados pela ausência da tal juridicidade plena, simultaneamente a isso, compreendeu-se que esse mandamento legal caminha em direção ao chamado simbolismo penal.
PALAVRAS-CHAVES: Nova Lei de Abuso de Autoridade; Inconstitucionalidade material; Princípio da Taxatividade Penal; Lei Penal Simbólica.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA NORMA NO CONTEXTO BRASILIANO. 3. PANORAMA POLÍTICO DE AQUIESCÊNCIA DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE. 4. A CONTESTÁVEL ESPIRITUALIDADE CONSTITUCIONAL DA LEI nº 13.869/19. 5. O SIMBOLISMO CLARIVIDENTE DA NORMA. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 7. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O presente estudo científico tem interesse em argumentar a respeito da materialidade da tão contestada Lei nº 13.869/19, que acabou ficando reconhecida no meio jurídico como a Nova Lei de Abuso de Autoridade, a qual sucedeu a obsoleta Lei n° 4.898/65, também infinitamente criticada, mas por conta de sua transigência com relação aos excessos praticados por aqueles que deveriam proteger a sociedade.
Além disso, concomitantemente a essa análise, em virtude de a nova norma estar repleta de artigos com termos vagos e indeterminados, o que macula diretamente o Princípio da Taxatividade Penal, o qual decorre do Princípio da Legalidade que se encontra disposto no art. 5º, inciso XXX, da CF/88, será analisado se o que está expresso nesse novo regramento legal se adequa àquilo que é reconhecido como lei penal simbólica.
Nesse contexto, antes de aprofundar-se desenfreadamente no tema primordial dessa composição acadêmica, tem-se que explorar a historicidade da referida lei, isto é, de como se deu a conjuntura para o seu advento, para assim compreender a motivação do legislador infraconstitucional em criá-la dessa forma. Outrossim, isso também perpassa por analisar a Lei nº 4.898/65, além de verificar a possibilidade de haver existido outras disposições pretéritas que podem ter tratado sobre o assunto.
Na sequência, ainda atrelado um pouco ao momento histórico, mas, desta vez, averiguando o período que antecedeu a aprovação da Lei n° 13.869/19 – o progresso ocorrido dentro dos chamados bastidores – parte-se agora para examinar como se desenrolou esse processo de confirmação legislativa formal, a fim de compreender se a querela quanto ao conteúdo também se sucedeu no instante de legitimá-la no cerne do ordenamento jurídico brasileiro.
Imediatamente após esse tópico, inicia-se de fato a tratar propriamente da ideia nuclear dessa construção textual, a qual abordará o debate que gira em torno da legitimidade substancial dessa lei perante a Carta Magna, se realmente ela não fere princípios constitucionais basilares, com o propósito de captar o porquê de ela ser tão amplamente questionada nos dias atuais pelos operadores do Direito.
Por consequência dessa análise material, em virtude da nítida demanda em procurar punir rigidamente aqueles que praticam atos considerados como abuso de autoridade, percebeu-se que a Lei n° 13.869/19 está trazendo uma grande insegurança jurídica para o MP, Poder Judiciário e órgãos investigativos, assim sendo, engessando a aplicação dela de tal modo que esta já começa a desenhar-se como mais uma lei penal simbólica, ponto esse que será examinado nesta seção.
Para contextualizar tudo isso que foi descrito de maneira pormenorizada, fez-se necessário empregar de um método descritivo-analítico, recorrendo ao uso de um estudo constituído essencialmente da reunião bibliográfica, especialmente, de autores que tratam de comentar detalhadamente cada artigo da lei em questão. Ademais, o projeto se apoiou em artigos publicados que foram encontrados na Internet, além de algumas normas já positivadas no ordenamento jurídico pátrio, tudo com o claro objetivo deslindar a questão aduzida.
Perante o exposto, conclui-se pela importância que o assunto pode trazer para o meio acadêmico, já que ainda se trata de um objeto de discussão relativamente recente e que causa controvérsias bastante frequentes entre os operadores do Direito, em virtude da aplicação prática da lei produzir pouquíssima segurança jurídica, à vista disso, compreende-se que debater a respeito da constitucionalidade material não se trata de uma escolha, mas de uma obrigação legal perante aqueles que eventualmente possam necessitar dela e que pouco entendem acerca de juridicidade da norma: que é a sociedade.
- DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA NORMA NO CONTEXTO BRASILIANO
Inicialmente, para chegar até o ápice normativo, que, neste caso, trata-se da lei nº 13.869/19, é necessário avaliar os fragmentos que serviram de parâmetros para o seu surgimento, isto é, entender o seu passado evolutivo dentro do regramento brasileiro, não se resumindo apenas a lei n° 4.898/65, já que dificilmente se alcançaria tamanha rigidez punitiva como essa que se originou sem nenhum tipo de anteparo legal. Logo, entender o passado é essencialmente importante para compreender os passos dados até o momento presente.
Ainda que possa soar como, no mínimo, controverso, os primeiros traços normativos que trataram sobre a temática dos crimes de abuso de autoridade advêm da época da monarquia brasileira, especificamente, desde a primeira Constituição de 1824, período em que o acesso à justiça era tão inatingível quanto é agora nos tempos atuais, conforme pode-se perceber no trecho da obra Nova Lei do Abuso de Autoridade (PINHEIRO; CAVALCANTE; BRANCO, 2019, pg. 11):
O Brasil, mesmo em períodos nada democráticos ou republicanos, sempre seguiu essa linha (pelo menos na teoria). Apenas a título de ilustração, citamos que, já na Constituição Imperial de 1824, havia previsões expressas voltadas a punir os abusos praticados por alguns agentes estatais, muito embora naquela época ainda vigesse o dogma da irresponsabilidade do Imperador. Naquele mesmo período, porém, aprovou-se lei específica sobre assunto, o que virou uma tradição nacional que subsiste até a presente data, sendo a Lei nº 13.869/2019 o último ato desse movimento secular, mesmo com o vício de finalidade publicamente declarado na sua aprovação de última hora.
Percebe-se que, a partir daí, em menor ou maior grau, o legislador sempre procurou deixar um espaço disponível nas Cartas Constitucionais subsequentes para tratar dos crimes praticados por agentes públicos no exercício de suas funções ou a pretexto delas, além, é claro, de também criar regramentos infraconstitucionais dispostos a tratar de situações específicas que se enquadrariam na essência do que seria abuso de poder ou de autoridade, mas sendo isso em outras searas, como, a título de exemplos, nas áreas de improbidade administrativa (Lei Federal n° 8.429/92), eleitoral (Lei Federal n° 4.737/65) e de crimes de responsabilidade (Lei Federal n° 1.079/1950).
É exatamente isso o que se absorve das palavras de Beto Simonetti (SIMONETTI, 2021), o qual afirma que, por meio dos vários exemplos que surgiram durante o trajeto histórico republicano, houve uma preocupação bastante intensa por parte dos constitucionalistas brasilianos em rechaçar abusos praticados por autoridades contra os seus cidadãos, independentemente do período vivido pela nação, inclusive naqueles de maior opressão de pensamentos políticos. Sendo que, por conta desse desenrolar histórico, era previsível que o combate a essas ilegalidades (abuso de autoridade) estivessem sedimentadas na Constituição de 1988, carinhosamente conhecida como Constituição Cidadã.
Diante dessa explanação, acredita-se que seja possível afirmar que muitos ainda imaginem que talvez a única expressão positivada no ordenamento jurídico pátrio que tratasse sobre a matéria fosse a famigerada Lei n° 4.898/65, o que já foi totalmente descaracterizado com o pouco que foi disposto até então. Aliás, cabe destacar ainda que essa norma surgiu no início da Ditadura Militar (1964), ou seja, num período totalmente antidemocrático, o que reforça o fato de que momentos obscuros politicamente não impediram o nascimento de leis que visassem punir abusos praticados por agentes estatais.
Apesar dessa última norma pretérita ter perdurado por tanto tempo, isso não significava que era imune às críticas, pelo contrário, era constantemente alvo de embates acerca da sua real efetividade, principalmente no que tangia à punição dos infratores, as quais eram consideradas ínfimas, além de ser reconhecida como ultrapassada para os padrões contemporâneos, logo, assim como alguns autores (PINHEIRO; CAVALCANTE; BRANCO, 2019), era incontestável haver uma transformação, o que de fato acabou por ocorrer, gerando aquilo que paira nos ares da atualidade, isto é, a Lei n° 13.869/19.
- PANORAMA POLÍTICO DE AQUIESCÊNCIA DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE
Em primeiro lugar, cabe salientar que o contexto em que se deu o nascedouro da Lei n 13.869/19 não poderia ter escolhido um momento melhor para acontecer, pois, em claro conflito com o agora ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, assim como se deu em praticamente todo o seu mandato, além da presente ameaça da Operação Lava-Jato, que ainda atuava fortemente quando da aprovação, o parlamento entendeu que aquela era ocasião acertada para legiferar a respeito de uma nova – e mais rígida – lei de abuso de autoridade.
Não obstante houvesse a elementar necessidade de substituir a Lei n° 4.898/65, a qual era considerada obsoleta e extremamente inoperante por muitos operadores do Direito, a verdade é que essa exigência foi utilizada como um subterfúgio pelos parlamentares para aprovar uma norma ao bel-prazer deles, haja vista se sentirem ameaçados pelas intensas investigações realizadas contra a classe política. É exatamente isso que pode ser extraído de um trecho da obra Leis Penais Especiais (PUREZA, 2022, pg. 41) ao tratar sobre o assunto, que diz:
Todavia, não podemos deixar de avaliar o contexto histórico e político com que foi apresentada a Lei n° 13.869/2019 pelo Congresso Nacional. Muitos parlamentares que atuaram direta e indiretamente na construção dessa lei não fizeram nem mesmo questão de disfarçar o sentimento de revanchismo contra autoridades públicas, em especial àquelas que atuam diretamente no combate e prevenção à corrupção, redundando na presente lei geradora de censuras, diversas controvérsias na comunidade jurídica e sentimento de revolta na população em geral.
Por consequência dessa testilha de interesses entre os poderes Executivo e Legislativo, todo o processo até chegar à aprovação da Lei n° 13.869/19 foi profundamente complexo, incluso houve uma seção de vetos a vários artigos, tidos como, no mínimo, discutíveis, sendo que alguns foram derrubados pelo parlamento, numa nítida espécie de batalha de jogo de xadrez político, em que um tenta bloquear a jogada do outro, ao mesmo tempo em que busca derrubar o rei para vencer a partida, pouco se preocupando com a real aplicabilidade daquilo que está sendo positivado no ordenamento jurídico e, principalmente, com a sua constitucionalidade material, não apenas formal do regramento.
Apesar do enorme esforço realizado para aprová-la, cabe destacar um ponto positivo dela, se assim se pode dizer, também destacado por grande maioria da doutrina, no que dispõe sobre a necessidade de haver dolo específico para que se possa constituir crime de abuso de autoridade. Ademais, há ainda outro aspecto a ser realçado, que foi o afastamento daquilo que seria o “crime de hermenêutica”, termo muitíssimo utilizado para descrever tal trecho disposto na norma. Esses pormenores são expostos na obra Comentário à Lei de Abuso de Autoridade (BADARÓ; BREDA, 2020, pg. 23), que reproduz:
Nos §§1º e 2º do artigo 1º da Lei n° 13.869/2019 são estabelecidas duas regras gerais fundamentais para limitar a caracterização dos crimes de abuso de autoridade e, consequentemente, assegurar o livre exercício do poder público por sua Autoridade e seus agentes. Sem tais salvaguardas, situações de dúvida ou casos que se situam em zonas de penumbras poderiam fazer com que agentes mais temerosos se sentissem impedidos de atuar, sob o receio de vir a ser responsabilizados e, com isso, deixassem de agir corretamente.
À vista do pouco que fora descrito, percebe-se o quão insalubre era a conjuntura política que antecedeu o processo de aprovação da Lei nº 13.869/19, algo que raramente não deixa de acontecer na história brasileira, exceto quando os interesses se convergem a um estado de harmonia estranhamente pleno, sendo que, em muitos casos, infelizmente, está associado a escândalos de corrupção, ou ainda, quando a matéria a ser discutida é infimamente irrelevante, o que acaba por não exigir muito afinco para validar, como em situações de dar nomes a ruas, praças ou outras pequenas coisas, o que acaba por explicar a infinidade de normas descartáveis no ordenamento jurídico, além, é claro, de entender o porquê da pouca exigência de qualificação técnica por parte dos representantes eleitos para o exercício de suas funções.
Para finalizar esse tópico, vale salientar que há também uma pequena parcela da doutrina que entende pela constitucionalidade do conteúdo homologado, não apenas no que se refere ao seu aspecto formal, por inferir que seria amplamente melhor do que a Lei n° 4.898/65. No entanto, sem entrar nesse mérito, até porque é natural haver disparidades de pensamentos entre seres convivendo em sociedade, além disso, não se trata do centro do debate acadêmico levantado aqui, compreende-se que essa reforma normativa era bastante necessária, entretanto, o que se discute foi a forma como ela foi aventada, pois, do contrário, havendo sido realizada pensando de fato no social, talvez não houvesse tantos embates tratando acerca da sua constitucionalidade global.
- A CONTESTÁVEL ESPIRITUALIDADE CONSTITUCIONAL DA LEI nº 13.869/19
Em princípio, pode-se afirmar que tratar da constitucionalidade de cada nova lei que adentra o sistema jurídico brasileiro, especificamente, no que trata da óptica substancial da norma, é um exercício quase que diário de tão constante que essa hipertrofia legislativa acontece, atrelado também ao fato das inúmeras atecnias encontradas nos textos, talvez, fruto de um processamento sem muito debate de ideias –ou até de forma proporcional – o que acaba por gerar códigos controvertidos quanto ao seu aspecto constitucional.
Infelizmente, isso não foi diferente com relação à nova normativa que condena os atos rotulados como abuso de autoridade, não porque era desnecessária uma mudança nos alicerces ideológicos dessa lei, visto que isso era um ponto incontestável entre todos da seara jurídica, todavia, o que se questiona é a forma como se deu a concepção da Lei n° 13.869/19, porquanto era nítida a pouca preocupação em criar algo em prol do coletivo, e sim, em favor da própria camada política, o que, provavelmente, provocou o surgimento de várias falhas, as quais violam massivamente o Princípio da Taxatividade (PINHEIRO; CAVALCANTE; BRANCO, 2019).
Partindo-se desse pressuposto, com o claro objetivo de constatar essas arguições alvitradas por parte avassaladora da doutrina, primeiramente, fez-se necessário realizar uma leitura bastante aprofundada dos artigos, em especial, daqueles que dispunham sobre os crimes, para que se pudesse decifrar o verdadeiro conteúdo transmitido pelo legislador – não ficando limitado ao mero achismo recebido como verdade – e o que se percebeu foi realmente uma inequívoca lesão a esse importante princípio norteador do Direito Penal, o qual é intimamente conectado ao Princípio da Legalidade, visto que há vários pontos obscuros e termos indetermináveis espalhados pelo regramento, o que pode acabar gerando uma enorme insegurança jurídica por quem for aplicá-la, consequentemente, possibilidade de impunidade. É o que se compreende da passagem abaixo (PINHEIRO; CAVALCANTE; BRANCO, 2019, pg. 16):
Ocorre que a lei é cheia de comandos vagos e imprecisos que impedem a perfeita compreensão prévia do que se criminalizou, ficando a autoridade pública, em muitas das vezes, sujeita ao modo de pensar do magistrado que vai julgá-lo.
Na realidade, já existem decisões cunhadas de intenso receio de tomar determinadas medidas com a justificativa de poder incorrer em algum delito da Lei n° 13.869/19 (PINHEIRO; CAVALCANTE; BRANCO, 2019). Entretanto, o papel dessa obra não é desqualificar a novel normativa por inteiro, pois se entende que, apesar das imperfeições, ela ainda se mostra muito válida para o seu propósito, muito menos buscar um protecionismo exacerbado para quem deva sofrer as punições devidas por abusos praticados, mas sim, demonstrar a contaminação da sua essência, do seu “espírito constitucional”, a fim de demonstrar a existência de atentados a preceitos provenientes da Carta Magna, o que de fato há.
Com base nisso, enxerga-se que essa violação a tal princípio (Taxatividade) deve ser refutada de maneira impetuosa, pois, do contrário, a partir do momento em que se permitir a criação descontrolada de conceitos de normas penais vagos e indeterminados, abrirá margem para o cometimento de arbitrariedades em demasia, por parte daqueles que detém o poder, na ocasião de aplicar punições, o que tornará o trabalho do intérprete de dizer o direito extremamente desgastante. É o que a passagem abaixo (BADARÓ; BREDA, 2020, pg. 78) deixa transparecer ao tratar da Lei n° 13.869/19, que diz:
Por outro lado, a norma peca pela falta de técnica em certos dispositivos, em especial pelo uso de adjetivos desnecessários e termos imprecisos que exigirão do intérprete um esforço para fixar parâmetros racionais e razoáveis para sua aplicação, evitando excessos que afetem o exercício legítimo das atribuições dos agentes públicos.
Outrossim, em especial, no que concerne especificamente à Lei nº 13.869/19, entende-se que deve haver uma mudança cirúrgica na estrutura dos pontos controvertidos dessa norma – haja vista entender que outros conceitos penais encontram-se válidos com a realidade social atual – com o objetivo de corrigi-la de maneira a ligá-la substancialmente aos preceitos fundamentais da Constituição Federal de 1988, visto que, caso contrário, muito provavelmente causará um grave dano ao concreto desempenho da função jurisdicional, além, é claro, de um acentuado prejuízo para o sistema de segurança pública como um todo. Esse é mais ou menos o viés que o pensamento do autor da Obra Nova Lei do Abuso de Autoridade (PINHEIRO; CAVALCANTE; BRANCO, 2019, pg. 23) estava prevendo logo no início da vida legal dessa norma, que diz:
Subsistindo esses tipos penais da lei de abuso de autoridade sem qualquer declaração de inconstitucionalidade ou uma interpretação que reduza o grau de insegurança jurídica, não precisa ser vidente para prever que pode ocorrer uma reação em cadeia (não combinada) no sentido das autoridades judicantes e investigativas passarem a se omitir por medo, pois, mesmo seus atos ainda podendo ser objeto de ações constitucionais (habeas corpus, mandado de segurança ou reclamação) ou de impugnação pelas múltiplas possibilidades que o sistema recursal brasileiro permite, estarão sujeitas ao receio de se verem admoestadas (como levianamente já vêm alguns advogados fazendo mesmo com a lei em pleno vacatio legis) ou representadas criminalmente sem fundamento (fazendo perder tempo e dinheiro com a respectiva defesa), o que pode trazer, em última análise, sérios prejuízos para a efetividade da prestação jurisdicional (artigo 5º, XXXV, CF/88) e para a própria segurança pública (artigo 144, CF/88).
Diante do exposto, pode-se afirmar que, de fato, as críticas atreladas à atual lei quanto à sua constitucionalidade material eram totalmente compatíveis com os argumentos aventados – no que tange à ausência de taxatividade dos termos – inclusive por aqueles que defendem a existência da norma, no entanto, alguns entendem que as suas obscuridades acabariam por favorecer os próprios agressores, ou seja, a ponto de criar uma “carcaça protetora” que os protejam das “garras da Justiça”. Logicamente, esse não é o pensamento que esse trabalho busca transmitir, na verdade, coaduna-se com a ideia da maioria de que o regramento busca realmente é frenar a atividade das autoridades judicantes e investigativas.
Por fim, cabe salientar que o objeto central da tese que fora levantado logo no início dessa “conversa acadêmica” foi alcançado e confirmado, em outras palavras, apesar da Lei nº 13.869/19 ter sido promovida de acordo com as normas procedimentais legislativas – pelo menos de maneira aparente – o seu âmago conteudístico ofende veementemente a Constituição Federal de 1988, o que infelizmente pode pôr em riscos o núcleo essencial de direitos e garantias fundamentais, já que não é legítima em sua plenitude.
- O SIMBOLISMO CLARIVIDENTE DA NORMA
Antes de destacar se a Lei n° 13.869/19 possui um caráter simbólico quanto à sua aplicação prática, no sentido crítico do termo, cabe salientar o que seja o chamado Simbolismo Penal (oriundo do direito alemão), assunto muito discutido atualmente no ambiente jurídico pátrio, principalmente, por conta da monstruosa variedade de normas criminais que estão surgindo, fruto de uma hipertrofia legislatória sem muito debate por parte dos parlamentares, que, geralmente, busca apenas transmitir uma falsa sensação de segurança para uma sociedade que cada vez mais clama por tipos penais rígidos. Isso fica mais claro com o trecho abaixo do artigo de Melissa Aparecida Batista de Souza (DE SOUZA, 2021):
É uma expressão inicialmente delineada pela doutrina estrangeira e que posteriormente se tornou também muito notável no Brasil, sobretudo nos últimos tempos nos quais houve a exacerbada produção de atos legislativos que configuram e se encaixam perfeitamente no termo discutido, tornando-se cada vez mais necessários estudos e aprofundamentos sobre esse tema relativamente recente, mas que representa uma prática que de há muito pode ser percebida quando se adentra no assunto da produção de normas penais in pejus no Brasil.
Ademais, acentua-se que esse tipo de conjuntura costuma ser edificado quando ocorre um fato bastante relevante (midiaticamente), o que faz com o Estado tenha que dá uma resposta extremamente rápida e à altura do dano causado ao bem jurídico prejudicado, em virtude, é verdade, da enorme pressão causada pelas notícias das violações que foram absorvidas pelo corpo social. À vista disso, como feedback, a coletividade recebe como prêmio o endurecimento das punições de tipos penais já existentes ou a criação de novos delitos, os quais, por muitas vezes, mostram-se desnecessários, consequentemente, vindo a cair no esquecimento, fazendo com que se desvirtue a chamada ultima ratio do Direito Penal. Embora seja relativamente pretérito, o trecho de um artigo de Ana Maria Souza (SOUZA, 2015) ainda traduz isso, que diz o seguinte:
Hodiernamente, neste modelo de legislação simbólica observam-se inúmeras leis criadas na efervescência de um clamor público, são exemplos, a Lei Carolina Dieckmann, a lei Seca, entre outras. Todas elas criadas após um fato ocorrido na sociedade gerador de pressões para criação de leis específicas. O resultado prático dessas criações legislativas urgentes é a aparente sensação de que alguma providência fora tomada, sem qualquer compromisso com a efetividade.
Há ainda que se mencionar aqueles que entendem que a atmosfera simbólica já faz parte da própria estrutura essencial das leis penais, portanto, seria equivocado a utilização da expressão Direito Penal Simbólico para discriminar a parte pelo todo, visto que esse termo faz referência à crítica prestada quando da utilização da máquina estatal para criar normas para preencher o anseio por segurança (ainda que momentâneo ou fictício) da sociedade. Na obra Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas (JAKOBS; MELIÁ, 2012, pg. 79), isso é tratado da seguinte forma:
Então, o que quer dizer-se com a crítica ao caráter simbólico, se toda a legislação penal, necessariamente, possui características que se podem denominar de <<simbólicas>>? Quando se usa em sentido crítico o conceito de Direito Penal simbólico, quer-se, então, fazer referência a que determinados agentes políticos tão só perseguem o objetivo de dar a <<impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido>>, isto é, que predomina uma função latente sobre a manifesta, ou dito em uma nova formulação, que há uma discrepância entre os objetivos invocados pelo legislador – e os agentes políticos que conformam as maiores deste – e a “agenda real” oculta sob aquelas declarações expressas.
A contar deste instante, começa-se efetivamente a abordar a existência de um paralelo entre a Lei n° 13.869/19 e o denominado simbolismo penal, no sentido negativo da análise, isto é, se essa norma está a caminhar em direção de ser mais uma norma esquecida socialmente. Nessa perspectiva, no livro A Nova Lei de Abuso de Autoridade (MARQUES; SILVA, 2019, pg. 53), afirma-se taxativamente que esse regramento foi arquitetado exatamente para ser simbólico, conforme se descreve a seguir:
Para nós, advogados criminalistas, atuantes há décadas (somando o tempo de trabalho dos dois coautores), cristalina é a construção da lei para não funcionar, desde a escolha dos complexos elementos subjetivos que dependerão de prova produzida pelo Ministério Público, titular da ação penal pública para todos os tipos penais, até o preceito secundário, com penas baixas e de leve potencial ofensivo.
Nesse diapasão, interpreta-se que esse fenômeno ocorre pura e simplesmente pelo fato da norma haver sido forjada como um escudo protetor para aqueles que a violam, ao invés de haver sido fabricada como uma lança a ser usada para atacar justamente quem fere os direitos da coletividade indefesa, por meio de seus poderes dados pelas funções/cargos de autoridades. Logo, essa impossibilidade punitiva metodicamente planejada (se assim se pode dizer) à norteia indubitavelmente a transformar-se em mais outra lei penal simbólica.
Diferentemente desse raciocínio, entende-se que há sim uma presumida probabilidade da Lei n° 13.964/19 deixar de ter uma relevante importância no combate aos abusos executados por seus agentes públicos (se isso já não for uma realidade) e se personificar numa “lei morta em exercício”, no entanto, a causa seria totalmente outra, no caso, numa espécie de simbolismo às aversas, se assim pode-se dizer, pois a sua ineficiência partiria das próprias autoridades, que se quedariam inertes em praticar atos que acabassem por se enquadrar em algum tipo penal dessa tão debatida norma criminal.
Portanto, independemente do posto de vista, pode-se afirmar que o resultado a que se chega é único, em outras palavras, que a atual lei de abuso de autoridade caminha a passos muito largos para tornar-se mais um dispositivo positivado no ordenamento jurídico brasileiro – assim como inúmeros outros – a ser taxado de ineficiente, falhando, assim, em seu propósito primordial como norma legal, que é: o de fazer justiça para os mais necessitados.
- CONCLUSÕES FINAIS
Em conformidade ao que foi enunciado no início da introdução, essa dissertação teve como propósito fundamental aclarar um pouco a discussão que há sobre a questionável constitucionalidade material da Lei n° 13.869/19, alcunhada na ordem jurídica pátria como a Nova Lei de Abuso de Autoridade, a qual assumiu o posto da ultrapassada e não menos criticada Lei nº 4.898/65.
Concomitantemente a esse exame, devido a diversos pontos obscuros existentes na norma, o que acaba por violar “de morte” o Princípio da Taxatividade Penal, íntimo desdobramento do Princípio da Legalidade, o qual está insculpido diretamente na CF/88, fez-se imprescindível explorar se o que está descrito nela se enquadraria ao conceito denominado de Simbolismo Penal.
Para chegar a isso, antes de mais nada, fez-se necessário realizar uma exploração histórica da referida lei, com o objetivo de compreender o real motivo de haver sido confeccionada desse modo. Ademais, isso também significou percorrer a sua antecessora natural, isto é, a Lei nº 4.898/65, bem como investigar a chance de outros dispositivos dessa natureza terem ocorrido em outros períodos do passado brasileiro.
Houve ainda a necessidade de realizar uma análise do modo como se deu o desenvolvimento legislativo que antecedeu a aprovação da atual e polêmica lei que trata dos crimes de abuso de autoridade, com o fito de entender se as controvérsias quanto ao seu teor substancial ocorreram durante esse ínterim de “batalha política” para pô-la ou não dentro do sistema normativo legal.
Após detalhar aquilo que lhe foi proposto, com relação à parcela principal da tese, pode-se concluir que há sim uma forte inconstitucionalidade material espalhada por diversos tipos penais da Lei n° 13.869/19, na forma de termos vagos e indeterminados, ferindo ativamente o Princípio da Taxatividade, o qual faz parte do substrato do Princípio da Legalidade, portanto, entende-se que esse debate restou fundamento.
Em ato quase que sincrônico, ao ser constatada a ofensa a elementos com fundamentos na Carta Constitucional de 1988, passou-se a analisar o segundo ponto – não menos importante – que era a questão do possível simbolismo dessa norma. Ao ser feito isso, chegou-se à conclusão que a denominada Nova Lei de Abuso de Autoridade está a tornar-se um regramento penal simbólico de fato, não pela falta de relevância como lei, muito menos perante a sociedade, mas sim, por temeridade dos agentes públicos em praticarem fatos que acabem por ser criminalizados por tipos dessa natureza.
Ante tudo que foi exposto, para finalizar, cabe destacar que o intuito desse trabalho jamais foi esgotar o tema, pelo contrário, foi atrair uma atenção maior no intuito de haver futuramente uma correção das obscuridades da norma, já que se entende que a lei também possui diversos tipos coerentes e válidos do posto de vista legal, pois, se isso não acontecer logo, prosperará o entendimento do seu caminhar para um simbolismo penal, consequentemente, a compreensão que a lei nunca será plenamente constitucional.
- REFERÊNCIAS
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