Moacir Leopoldo Haeser – Desembargador aposentado do TJRS e advogado, Especialista em Ciências Penais pela UFRGS, ex-professor da Faculdade de Direito da UNISC e da Escola Superior da Magistratura.
Não sei o que aconteceu. Quando me dei conta estava com os olhos fechados e ouvia alguns sons. Notei que não estava sozinha e com uma fome danada. Procurei em volta e encontrei uma ponta de onde saía um líquido divino que suguei sofregamente até me saciar. Aos poucos notei que havia vários que falavam a mesma língua.
Depois de um tempo abri os olhos e vi que os outros eram iguais a mim. Deviam ser meus irmãos pois estávamos sempre juntos e dependíamos todos da mesma fonte. Fazíamos muitas brincadeiras, simulando brigas e mordidas de faz de conta.
Quando eu já estava maior, de repente me separaram dos meus irmãos. Fui levada a um lugar onde notei que estavam me esperando. Me abraçaram, beijaram e me ofereceram comida. Eles me levaram a um amigo deles que me examinou e me picou. Explicaram que era necessário para minha saúde.
No começo alguns queriam me chamar de Frida, mas a fêmea alfa me chamou de Gaia. Adorei esse nome. É uma deusa, sabe?
Eles cuidam muito bem de mim. O chefe da matilha tem muitos brinquedos e adora brincar. Eu sempre levo de volta para ele quando os atira longe. Fazemos de conta que estamos brigando, um puxando em cada ponta. Eu gosto de morder levemente as mãos dele. São quentes e macias. Sempre tem um cheirinho especial de alguma coisa que ele pegou.
Ele é advogado e sempre defende os injustiçados. Muitos não entendem o que nós sentimos. Nós também somos da família, sabe? Fomos criados por eles e adoramos estar em sua companhia. Basta que fiquem longe alguma horas para ficarmos tristes e deprimidos. Quando retornam é aquela festa. Não cabemos de contentamento.
Fiquei sabendo que em um julgamento no Tribunal dos homens ele insistiu que meu guardião tinha direito de visitar os meus amigos. Os dois guardiões não mais se entenderam e eles tinham ficado com a fêmea alfa. Eles sentiam muita saudade e ele queria se aproximar da casa e fazer uma visita, mas eles não permitiram. Disseram que cães não é matéria de direito de família e se recusaram a apreciar o pedido.
Felizmente as coisas estão mudando. Após uma separação é preciso decidir sobre a guarda dos animais, que cada vez mais fazem parte da família, e o direito de conviver com o outro guardião. Eu sou senciente, sabe? Sou capaz de sentir, de vivenciar sentimentos como dor, angústia, solidão, amor, alegria, raiva, etc. Isso não é privilégio do ser humano, mas de todos os animais. Eu não sou uma coisa!
O outro Tribunal dos homens[1] também está avançando no conceito de que há dever moral de zelar pelo nosso bem-estar e nossa manutenção, mesmo depois de desfeitos a união e o contexto em que fomos adquiridos. O julgamento estava empatado. A Ministra Nancy Andrighi pediu vista.
O reconhecimento do status de sujeito de direitos parte do pressuposto de que, por sermos dotados de sensibilidade ou “senciência”[2], e, portanto, capazes de sentir dor ou prazer, nós somos titulares de interesses que devem ser protegidos. Eu adoro todos da minha família e nunca quero ficar longe deles.
Estou ouvindo meu amo mexer os dedos e estão aparecendo aqueles sinaizinhos numa tela iluminada. Como gostaria que ele falasse em mim, mas como vou fazer ele entender? Só consigo olhar para ele com aquele olhar apaixonado, esperando ele terminar e vir brincar comigo.
NOTAS:
[1] REsp nº 1860806 – STJ
[2] Pedro Ledur – Senciente, despacho ordinatório, princípio nonagesimal, etc. | Espaço Vital (espacovital.com.br)