A Manutenção da Cadeia de Custódia da Prova pelo Superior Tribunal de Justiça

Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

 

No julgamento do Agravo Regimental no Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº. 143.169/RJ, tendo como relator para o acórdão o Ministro Ribeiro Dantas, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na sessão realizada no dia 07 de fevereiro deste ano (o acórdão foi publicado no Diário de Justiça Eletrônico do dia 02 de março), por maioria de votos, anulou os elementos probatórios colhidos em um processo criminal, em razão da quebra da cadeia de custódia da prova.

Segundo consta do voto (vencedor) do relator para o acórdão, “a principal finalidade da cadeia de custódia é garantir que os vestígios deixados no mundo material por uma infração penal correspondem exatamente àqueles arrecadados pela polícia, examinados e apresentados em juízo.”

Para ele, “a ideia de cadeia de custódia é logicamente indissociável do próprio conceito de corpo de delito, constante no CPP desde a redação original de seu art. 158. Por isso, mesmo para fatos anteriores a 2019, é necessário avaliar a preservação da cadeia de custódia.”

Assim, necessariamente, “a autoridade policial responsável pela apreensão de um computador (ou outro dispositivo de armazenamento de informações digitais) deve copiar integralmente (bit a bit) o conteúdo do dispositivo, gerando uma imagem dos dados: um arquivo que espelha e representa fielmente o conteúdo original.”

Conforme acertada e detalhadamente explicado no voto divergente, “aplicando-se uma técnica de algoritmo hash, é possível obter uma assinatura única para cada arquivo, que teria um valor diferente caso um único bit de informação fosse alterado em alguma etapa da investigação, quando a fonte de prova já estivesse sob a custódia da polícia. Comparando as hashes calculadas nos momentos da coleta e da perícia (ou de sua repetição em juízo), é possível detectar se o conteúdo extraído do dispositivo foi modificado.”

Outrossim, constou expressamente da ementa que “é ônus do Estado comprovar a integridade e confiabilidade das fontes de prova por ele apresentadas, sendo incabível, aqui, simplesmente presumir a veracidade das alegações estatais, quando descumpridos os procedimentos referentes à cadeia de custódia. No processo penal, a atividade do Estado é o objeto do controle de legalidade, e não o parâmetro do controle; isto é, cabe ao Judiciário controlar a atuação do Estado-acusação a partir do direito, e não a partir de uma autoproclamada confiança que o Estado-acusação deposita em si mesmo.”

Observa-se que, no caso julgado, “a polícia não documentou nenhum dos atos por ela praticados na arrecadação, armazenamento e análise dos computadores apreendidos durante o inquérito, nem se preocupou em apresentar garantias de que seu conteúdo permaneceu íntegro enquanto esteve sob a custódia policial. Como consequência, não há como assegurar que os dados informáticos periciados são íntegros e idênticos aos que existiam nos computadores do réu.”

Assim, concluiu-se o julgamento pela inadmissibilidade das provas extraídas dos computadores do acusado, bem como das provas delas derivadas, em aplicação analógica do art. 157, § 1º, do CPP, em razão da quebra da cadeia de custódia.

A decisão do Superior Tribunal de Justiça está corretíssima, pois, como se sabe, o chamado Pacote Anticrime (Lei nº. 13.964/19) acrescentou os artigos 158-A a 158-F ao Código de Processo Penal, consagrando em nosso ordenamento jurídico o procedimento da cadeia de custódia, conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte; iniciando-se com a preservação do local de crime ou com procedimentos policiais ou periciais nos quais seja detectada a existência de vestígio.

Para Renato Brasileiro, a cadeia de custódia “consiste, em termos gerais, em um mecanismo garantidor da autenticidade das evidências coletadas e examinadas, assegurando que correspondem ao caso investigado, sem que haja lugar para qualquer tipo de adulteração. Funciona, pois, como a documentação formal de um procedimento destinado a manter e documentar a história cronológica de uma evidência, evitando-se, assim, eventuais interferências internas e externas capazes de colocar em dúvida o resultado da atividade probatória, assegurando, assim, o rastreamento da evidência desde o local do crime até o Tribunal. Fundamenta-se no chamado princípio da ‘autenticidade da prova’, um princípio básico pelo qual se entende que determinado vestígio relacionado à infração penal, encontrado, por exemplo, no local do crime, é o mesmo que o magistrado está usando para formar seu convencimento. Daí o porquê de tamanho cuidado na formação e preservação dos elementos probatórios no âmbito processual penal.”[1]

Finalmente, ainda sobre o tema, Geraldo Prado (a quem coube a sustentação oral na sessão de julgamento), em trabalho (possivelmente) pioneiro no Brasil, afirma que se trata de um “método por meio do qual se pretende preservar a integridade do elemento probatório e assegurar sua autenticidade. A violação da cadeia de custódia implica a impossibilidade de valoração da prova, configurando seu exame – de verificação da cadeia de custódia – um dos objetos do juízo de admissibilidade do meio de prova ou do meio de obtenção de prova, conforme o caso. As consequências jurídicas da quebra da cadeia de custódia não se submetem a juízo de peso probatório, sequer de relevância da prova.[2]

Vê-se, destarte, que se trata de uma formalidade absolutamente indispensável para que se considere como lícita a produção da prova e, portanto, apta para a comprovação da existência material do crime que deixou vestígios, nos termos do ar. 158, do Código de Processo Penal.

Como se sabe, o processo penal funciona em um Estado Democrático de Direito como um meio (não um instrumento) necessário e inafastável de garantia dos direitos do acusado. Não é um mero instrumento de efetivação do Direito Penal, mas, verdadeiramente, um meio de satisfação de direitos humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado.

Aliás, sobre processo, já afirmou o mestre Calmon de Passos, não ser “algo que opera como simples meio, instrumento, sim um elemento que integra o próprio ser do Direito. A relação entre o chamado direito material e o processo não é uma relação meio/fim, instrumental, como se tem proclamado com tanta ênfase, ultimamente, por força do prestígio de seus arautos, sim uma relação integrativa, orgânica, substancial.”  Nessa mesma obra, o eminente processualista adverte que o “devido processo constitucional jurisdicional (como ele prefere designar), para evitar sofismas e distorções maliciosas, não é sinônimo de formalismo, nem culto da forma pela forma, do rito pelo rito, sim um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm poder de decidir.”[3]

Certamente sem um processo penal efetivamente garantidor, não podemos imaginar vivermos em uma verdadeira democracia[4]. Um texto processual penal deve trazer ínsita a certeza de que ao acusado, apesar do crime supostamente praticado, deve ser garantida a fruição de seus direitos previstos especialmente na Constituição do Estado Democrático de Direito.

Como afirma Ada Pelegrini Grinover, “o processo penal não pode ser entendido, apenas, como instrumento de persecução do réu. O processo penal se faz também – e até primacialmente – para a garantia do acusado. (…) Por isso é que no Estado de direito o processo penal não pode deixar de representar tutela da liberdade pessoal; e no tocante à persecução criminal deve constituir-se na antítese do despotismo, abandonando todo e qualquer aviltamento da personalidade humana. O processo é uma expressão de civilização e de cultura e consequentemente se submete aos limites impostos pelo reconhecimento dos valores da dignidade do homem.”[5]

Aliás, sobre o procedimento em matéria processual penal, e bem a propósito, ensina Antonio Scarance Fernandes que “a incorporação, nos ordenamentos, de modelos alternativos aos procedimentos comuns ou ordinários gera para as partes o direito a que, presentes os requisitos legais, sejam obrigatoriamente seguidos. (…) Em relação à extensão do procedimento, têm as partes direito aos atos e fases que formam o conjunto procedimental. Em síntese, têm direito à integralidade do procedimento.”[6]

Como afirma Gilberto Thums, no Estado Democrático de Direito “o rito processual deve representar uma garantia ao acusado de que terá a seu dispor todos os instrumentos de defesa e que não serão violados os seus direitos fundamentais assegurados na Constituição e nas leis, retratados no princípio do due processo of law.” Neste sentido, conclui o autor que “o rito desempenha um papel importante, tanto para o réu quanto para o jurisdicionado.”[7]

Saliente-se que tal questão não é “meramente procedimental” como se costuma, depreciativamente e de forma simplista, afirmar-se em algumas decisões judiciais que ainda teimam em invocar uma nociva “instrumentalidade do processo” para relativizar o rito processual em detrimento da garantia que ele representa para o acusado no processo penal.

Aliás, Calmon de Passos, há décadas, já contestava essa ideia, afirmando que “falar-se em instrumentalidade do processo é incorrer-se, mesmo que inconsciente e involuntariamente, em um equívoco de graves consequências, porque indutor do falso e perigoso entendimento de que é possível dissociar-se o ser do direito do dizer sobre o direito, o ser do direito do processo de sua produção, o direito material do direito processual.

Para esse autor, a instrumentalidade foi uma resposta dada “para o problema do sufoco em que vive o Poder Judiciário, dado o inadequado, antidemocrático e burocratizante modelo de sua institucionalização constitucional. A pergunta que cumpria fosse feita – quais as causas reais dessa crise – jamais foi formulada. E a resposta foi dada pela palavra mágica da ‘instrumentalidade’, a que se casaram outras palavras mágicas – ‘celeridade’, ‘efetividade’, ‘deformalização’ etc. E assim, de palavra mágica em palavra mágica, ingressamos num processo de produção do direito que corre o risco de se tornar pura prestidigitação. Não nos esqueçamos, entretanto, que todo espetáculo de mágica tem um tempo de duração e a hora do desencantamento.[8]

Pois que, infelizmente, até hoje como nunca antes, despreza-se a forma com argumentos utilitaristas, eficientistas e consequencialistas, como se um procedimento em matéria penal fosse apenas um “simples detalhe”, um arremate, digamos assim, perfeitamente dispensável, esquecendo-se que a sua observância é, sobretudo, uma garantia que o acusado será processado, julgado e (se for o caso) condenado sob o manto do devido processo legal, sem manipulações de qualquer natureza.

Evidentemente não há de se cogitar a aplicação do artigo 563 do Código de Processo Penal, pois no processo penal, cujo conteúdo difere substancialmente do Processo Civil[9], o prejuízo decorrente da inobservância do rito deve ser presumido e não provado pela defesa. Aliás, como ensina Cordero, ao estudar a etimologia da palavra “rito”, ela surge a partir de “palavras que trazem à mente a ideia de evolução ou desenvolvimento, de acordo com o prescrito em termos de forma, e de consequência ou de tempo”.[10]

Nesse sentido, e para finalizar, ressalta-se o que escreveu Alexandre Morais da Rosa:

Dessa primeira ilação, decorre outra, não menos importante: o prejuízo em razão da violação das formas, em matéria processual penal, é presumido normativamente. Em acréscimo, não há dever atribuído à parte, para fazer prova do alegado prejuízo. A forma no processo penal é tão basilar quanto o é a estrutura da razão humana para poder organizar os conteúdos cognitivos. Se a capacidade estrutural humana de relacionar as informações não estiver hígida, teremos uma patologia mental. De idêntica maneira, os conteúdos veiculados no processo devem respeitar os trilhos legais e constitucionais para viabilizar o seu conhecimento válido pelo juiz.  (…) Esse rigor (cuidado, prudência) é indispensável na aplicação do ramo do direito que visa tutelar a liberdade humana, objetivando limitar a imprevisibilidade e o abuso do poder. Volvendo para o enunciado do art. 563, do CPP, constatamos, inicialmente, que não há nele qualquer dever atribuído às partes para comprovar prejuízo decorrente da nulidade, porquanto disciplina que ‘nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa’. Em outras palavras, ao exigir que haja prova de prejuízo para o acusado a fim de permitir a nulificação de ato processual, o órgão judicial finda por obrigar alguém a fazer algo sem existência de lei expressa que o autorize, em descompasso com o inciso II, do art. 5º, da Constituição do Brasil, que preconiza que ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. Logo, mais uma ilação podemos alinhar: é antijurídico exigir, em desfavor do imputado, prova de prejuízo. Seja porque tem o potencial de lhe atribuir um dever, seja porque ofende o postulado de que, na dúvida, a decisão deve favorecer a liberdade, seja ainda porque não há prejuízo maior do que uma decisão que cerceie um direito fundamental seu. Afinal, reconhecemos, na forma, a essência. Mas há algo mais que depreendemos do art. 563, do CPP. Nele, não há distinção entre nulidades mais ou menos graves, absolutas ou relativas. A imprecisão terminológica do Código é um distintivo com potencial de ampliar o arbítrio. Os Tribunais, na senda da generalização, proclamaram uma espécie de ‘relativização das nulidades processuais’, cujo efeito foi o de permitir que o órgão judicial possa tudo ou quase tudo, sem os contornos que seriam necessários à atuação do Judiciário.[11]

NOTAS:

[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Pacote Anticrime: Comentários à Lei nº 13.964/19. Salvador: JusPodivum, 2020, pp. 250 e 251.

[2] PRADO, Geraldo. Breves notas sobre o fundamento constitucional da cadeia de custódia da prova digital. Disponível em: https://geraldoprado.com.br/artigos/breves-notas-sobre-o-fundamento-constitucional-da-cadeia-de-custodia-da-prova-digital/. Acesso em 22 de janeiro de 2021.

[3] PASSOS, J.J. Calmon de. Direito, Poder, Justiça e Processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pp. 68 e 69.

[4] Apesar que, como ensina Norberto Bobbio, “a Democracia perfeita até agora não foi realizada em nenhuma parte do mundo, sendo utópica, portanto.” (Dicionário de Política, Brasília: Universidade de Brasília, 1997, p. 329).

[5] GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, pp. 20 e 52.

[6] FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria Geral do Procedimento e o Procedimento no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pp. 67 e 69.

[7] THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 181.

[8] PASSOS, J.J. Calmon de. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal. Revista de Processo, nº. 102. São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 55 e seguintes.

[9] A propósito, é preciso ler e reler o clássico “A Lide e o Conteúdo do Processo Penal”, de Jacinto Nelson Miranda Coutinho, Curitiba: Juruá, 1998.

[10] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, Tomo I, Colômbia: Editorial Temis S/A, 2000, p. 6.

[11] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-23/nulidade-prejuizo-processo-penal-instrumentalidade-direito-material. Acesso em 07 de outubro de 2019.

 

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